quarta-feira, 1 de julho de 2015

Os mortos sem nome do Arizona
Restos de imigrantes encontrados no deserto que separa México dos EUA acabam no necrotério de Tucson, que faz o possível para identificá-los
Pablo Ximénez de Sandoval - El País
Em 2 de junho passado, no deserto do Arizona, Rody Roxana Matías Vásquez morreu de cansaço. Era natural de Huehuetenango, Guatemala, e tinha 23 anos. Entre suas roupas encontraram uma imagem da Virgem de San Juan de los Lagos, uma pulseira vermelha com uma flor, um colarzinho preto e um pedaço de agenda com dois telefones anotados, junto aos nomes Laura e Wendy, talvez pessoas a quem poderia telefonar quando chegasse aos Estados Unidos. Está tudo guardado em um saco plástico no necrotério de Tucson, Arizona (sudoeste dos EUA), sob o nome "Jane Doe 15-1426".
Foi o nome provisório de Roxana Matías até que, com a ajuda do Consulado da Guatemala e após contatar a família, a autoridade forense de Tucson conseguiu uma identificação definitiva do cadáver. Felizmente, ela foi encontrada graças à amiga que viajava com ela. Ao ser detida, esta disse aos agentes da Patrulha de Fronteiras que a havia deixado para trás e os levou até o corpo. Mais de uma centena de cadáveres por ano encontrados no deserto não têm quem lhes dê um nome.
"Quando alguém morre, o normal é que se saiba quem é", diz o diretor do instituto médico-legal de Tucson, Gregory Hess.
O que não é normal é que o necrotério de uma cidade de 500 mil habitantes tenha sistematicamente uma média de 170 cadáveres sem identificação por ano, há 15 anos. O ano recorde foi 2010, com 223  cadáveres de pessoas sem documentos recuperadas no deserto. Desde então, os números baixaram aos poucos, assim como outros indicadores de imigração ilegal nos últimos cinco anos. No ano passado, foram 107, três deles menores de idade. Desde outubro passado até maio são 25. A pior época começa agora.
Dos 2.330 cadáveres recuperados desde 2001 no Arizona, Tucson conseguiu identificar 65%. Mais de 800 permaneciam sem nome no final do ano passado, catalogados como "Jane Doe" ou "John Doe". Os números dispararam no final dos anos 1990, quando se reforçou a segurança na fronteira das áreas povoadas, o que obrigou os imigrantes a buscarem rotas mais arriscadas.
"Isso se transformou em um problema para este departamento a partir de 2000", afirma Hess, "em reação à segurança na fronteira". Então, sequer se catalogavam os cadáveres como imigrantes sem documentos. "O contrabando de pessoas ou de qualquer coisa tende a se adaptar às mudanças na segurança." As pessoas pararam de atravessar por Tijuana ou El Paso e começaram a vir pelo deserto.
Os números do condado de Pima são os mais completos de toda a fronteira, onde há compilação desses dados. As tarefas de identificação variam em cada condado, a ponto de haver lugares que não têm estatísticas. Pima, o condado com mais mortos sem documentos, é o termômetro do que ocorre na fronteira. Isso foi conseguido entre o instituto médico-legal e várias organizações humanitárias surgidas devido ao aumento do número de imigrantes.
A No More Deaths faz patrulhas pelo deserto para ajudar os imigrantes, quando os encontra. A Tucson Samaritans deixa garrafas de água em locais estratégicos por onde eles passam. Outra organização, a Colibri, é chave nas tarefas de identificação, pois compila informações de denúncias de desaparecidos e as compara com os dados do necrotério. A Colibri tem a base de dados mais completa de migrantes desaparecidos nos EUA. "Ninguém faz o que se faz aqui", afirma o cônsul da Guatemala em Tucson, Carlos de León.
As ferramentas em que se baseia o necrotério de Tucson para fazer esse trabalho são diversas. Existe um registro nacional de pessoas desaparecidas (Namus) onde é inserida a informação básica do cadáver, para ver se alguém identifica uma tatuagem, uma roupa, talvez a data em que foi encontrado o corpo. Qualquer um que não tenha notícia de alguém que ia atravessar pelo Arizona pode consultar o registro pela internet. Os consulados do México e de países centro-americanos também ajudam a localizar amigos ou parentes, a ligar para os telefones que os imigrantes tinham anotados. "Encontramos gente que já tinha sido deportada, isto é, que sabia no que estava se metendo."
Nos casos difíceis, pode-se obter o código genético de quase qualquer resto mortal, mas há o problema da falta de bases de dados de DNA ou registros dentais. "Agora estamos trabalhando com uma mandíbula", disse Hess em uma manhã de junho. Só isso, não havia mais nada. Uma mandíbula que um dia deu um beijo em sua mãe ou em seu filho e partiu em viagem. É normal que animais como coiotes ou gatos-do-mato espalhem os esqueletos em um raio de centenas de metros ao longo dos anos, explica Hess. É raro encontrar esqueletos completos.
A fronteira entre Arizona (EUA) e Sonora (México) é uma linha invisível no meio de um deserto inóspito. É o lugar mais perigoso para se entrar ilegalmente nos EUA, segundo a patrulha de fronteiras. Mesmo assim, dezenas (centenas?) de milhares de pessoas tentam caminhar todo ano por essa imensidão de areia e cactos. A única referência para saber quantos são é o número de detenções: 88 mil no ano passado.
No início do século, elas superavam 500 mil por ano. É o primeiro ano neste século em que baixam de 100 mil. A Delegacia de Polícia de Fronteiras de Tucson, uma espécie de epicentro da imigração irregular, é a maior dos EUA, com 4.300 agentes, o que garante ter 1.400 permanentemente em campo, vigiando esses 600 quilômetros de fronteira.
O que torna essa rota especialmente perigosa é que quase não há povoados de ambos os lados. No Texas, a fronteira é marcada pelo rio Grande, cuja correnteza também é muito perigosa. "Mas a diferença é que, ao chegar do outro lado, há uma casa antes de cem metros", explica o porta-voz da polícia de fronteiras, George Treviño. "Aqui você cruza o deserto e do outro lado há mais deserto." Um migrante que saia do último lugar povoado a oeste de Nogales, em Sonora, pode caminhar até 100 quilômetros pelo deserto antes de encontrar ajuda no Arizona.
O condado de Pima é um lugar onde o cartaz "Cuidado, serpentes cascavel" é encontrado até nos parques. No deserto, além disso, há escorpiões, aranhas e lagartos venenosos, gatos-do-mato e coiotes. Como diz o cônsul León, "no deserto é tão perigoso caminhar quanto parar para descansar". E a noite é tão perigosa quanto o dia. Foram encontradas pessoas com os dedos congelados como se estivessem cruzando os Alpes.
"No deserto, você precisa de sete litros de água por dia para sobreviver, e o tempo mínimo para atravessá-lo são três dias. Não é possível levar água suficiente consigo", explica o agente Treviño. A patrulha de fronteira de Tucson tem um grupo de 50 agentes chamado Borstar (busca e resgate) para assistência humanitária quando lhes informam que alguém está perdido. No deserto, colocaram 32 torres de resgate com luzes azuis para que o imigrante que quiser ajuda vá até elas e telefone de lá.
O caso de Rody Matías foi "de muita sorte", afirma León. O corpo estava inteiro, havia uma pessoa que podia dizer quem era e, o mais importante, foi capaz de levar os agentes até o corpo. É uma história comum: "Chegou em um grupo grande, não aguentou caminhar e o guia a deixou para trás. A lei do deserto é essa: quem não aguenta, fica." No condado de Pima, todos conhecem muito bem essa lei.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Nenhum comentário: