domingo, 2 de agosto de 2015

EUA desconheciam e interpretaram mal a figura de mulá Omar, diz biógrafa
Samiha Shafy - Der Spiegel
Reuters/National Counterterrorism Center
Depois de relatos da morte do mulá Omar, a situação no Afeganistão é caótica - o processo de paz está emperrado e os talibãs estão divididos. Uma jornalista holandesa que escreveu uma biografia do líder islâmico diz que seu papel foi exagerado
A jornalista holandesa Bette Dam, 36, passou oito anos trabalhando em Cabul. Atualmente ela trabalha em uma biografia do mulá Omar, o líder talibã recluso cuja morte foi divulgada na quinta-feira (30). A confirmação pelos talibãs se seguiu a relatos de autoridades afegãs e paquistanesas no início da semana de que o líder islâmico havia morrido há cerca de dois ou três anos. O mulá Omar era procurado desde 2001 por fornecer abrigo no Afeganistão ao líder terrorista Osama Bin Laden. Os EUA haviam até colocado uma recompensa de US$ 10 milhões por sua cabeça.
"Spiegel Online" falou com Bette Dam sobre a morte do mulá Omar e a verdadeira extensão de sua influência entre os talibãs.
SPIEGEL ONLINE: Relatos recentes de que o mulá Omar morreu há dois ou três anos foram agora confirmados pelos talibãs. A notícia chega apenas algumas semanas após o início de um processo de paz que o governo afegão iniciou com os talibãs. A notícia foi uma coincidência?
Bette Dam:Eu não acho que o momento seja coincidência. A pressão sobre os dois lados para ter negociações de paz é maior que nunca - e há muito em jogo. A informação sobre a morte do mulá Omar veio de fontes no Paquistão. Talvez o Paquistão queira forçar os talibãs a indicar um novo líder, porque o mulá Omar não era visto desde 2009. No que diz respeito aos talibãs, seus membros continuavam pedindo uma declaração do mulá Omar sobre as negociações de paz nas últimas semanas. Por isso a liderança pode ter decidido que este era o momento certo de confirmar sua morte. Talvez ele tenha sido declarado morto para que o movimento possa seguir em frente.
SPIEGEL ONLINE: A CIA vinha procurando o mulá Omar, e o governo americano até colocou até uma recompensa de US$ 10 milhões por sua cabeça. Por que sua morte permaneceu em segredo por tanto tempo?
Dam:O mulá Omar foi provavelmente o líder político mais misterioso do mundo. Eu acho que seu papel no movimento Taleban foi superestimado pelo Exército americano e pela mídia. Ele foi retratado como um grande inimigo. Mas minhas pesquisas mostram que ele não era ouvido desde 2001. Algumas vezes ele foi visto na região até 2009, e havia histórias sobre ele de vez em quando - de que ele foi visto em uma mesquita ou em outro lugar. Alguns dizem que ainda estava comandando os talibãs, mas não há provas. Ele não exerceu muita influência política ou militar. O movimento continuou ativo sem sua orientação, e ele se tornou um estranho para muitos de seu povo.
SPIEGEL ONLINE: Só na semana passada uma declaração supostamente escrita pelo mulá Omar foi publicada em um site talibã na web. Ele chamou as negociações de paz de "ilegítimas". Como você interpretaria isto?
Dam:Evidentemente, essa mensagem não foi escrita pelo mulá Omar. Em minha pesquisa, falei com os talibãs que escreveram essas declarações em nome dele no passado. Havia um entendimento comum de que o mulá Omar não estava envolvido nesse nível. Acho que nós no Ocidente realmente exageramos sua posição como líder do inimigo. Nesse sentido, nunca compreendemos o inimigo. Os americanos não conheciam o mulá Omar e interpretaram mal seus movimentos desde o início.
SPIEGEL ONLINE: Muito pouco se sabe sobre o mulá Omar como pessoa. O que a motivou a escrever um livro sobre ele?
Dam:Eu via um desentendimento sobre quem era o verdadeiro inimigo no Afeganistão. Percebi que, mais do que pensamos, o governo afegão corrupto, com seus chefes guerreiros lutando entre si, também era o inimigo. Muitas vezes bombas foram atribuídas aos talibãs, mas eles sempre estiveram por trás delas? Dificilmente algum jornalista falava com os talibãs. Então achei necessário retratar o movimento Taleban e seu líder, explicar quem são eles. Como resultado dessa pesquisa, o livro explicará por que o Ocidente está perdendo a guerra no Afeganistão.
SPIEGEL ONLINE: Como você conduziu as pesquisas para o livro?
Dam:Da perspectiva da vida em Cabul, os talibãs eram assustadores. Mas depois de viajar extensamente no sul, de onde vêm muitos talibãs, vi as coisas de modo diferente. Os talibãs ficavam contentes em falar, eles se sentiam incompreendidos. Por exemplo, consideravam um gesto importante que a maioria dos talibãs se rendeu ao presidente Hamid Karzai depois do 11 de Setembro e entregou suas armas. Mas os EUA e alguns de seus aliados não aceitaram a rendição talibã e enviaram exércitos para caçá-los. Quando eu me aproximei deles pela primeira vez, tive de conquistar sua confiança, é claro. Mas após algum tempo eles foram muito mais acessíveis do que eu havia esperado.
SPIEGEL ONLINE: Que imagem dos talibãs surgiu durante sua pesquisa?
Dam: Um dos pontos interessantes é que o mulá Omar era uma pessoa muito interessada pelo Ocidente. Ele realmente confiou nos EUA no início, porque eles o haviam ajudado durante a jihad nos anos 1980 para expulsar os soviéticos. Em 1996, quando ele se tornou líder dos talibãs, a primeira coisa que esperava que acontecesse era a reabertura da embaixada americana em Cabul. Em vez disso, seguiu-se uma grande incompreensão cultural porque o que nós víamos, é claro, era o tratamento dado pelos talibãs às mulheres, os apedrejamentos. Embora seja verdade que essas coisas são horríveis, também havia um contexto no Afeganistão, o da guerra civil. As mulheres estavam sendo removidas das ruas, estupradas e assassinadas. Eles colocavam as mulheres em sacos e as atiravam na água. Muitas tribos estavam se matando.
SPIEGEL ONLINE: Em que medida os talibãs restauraram a ordem em meio a esse caos?
Dam:A religião se tornou um instrumento para trazer de volta o regime da lei, e com frequência muitos afegãos a apoiaram. Se você levar isso em consideração, os talibãs eram um movimento local que poderia se repetir amanhã, porque há apoio a ele, especialmente quando a situação de segurança está se deteriorando.
SPIEGEL ONLINE: Agora que a morte dele foi confirmada, qual será o legado da liderança do mulá Omar?
Dam:O que as pessoas no Afeganistão lhe dirão sobre ele é que era um homem pouco instruído, um líder religioso simples, mas também era contra a corrupção. Segundo alguns, também foi respeitado porque instalou o primeiro Estado islâmico no Afeganistão. É claro que ele também tinha inimigos que pensavam de modo diferente. Mas de modo geral o que as pessoas costumavam mencionar para mim é que o Afeganistão até 2001 era 90% seguro e não mais de 10% corrupto.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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