Como realmente funciona o sistema de saúde americano
Juan Ramón Rallo - IMB
Sempre
que há um debate sobre sistemas de saúde e sobre como seria a medicina em um
ambiente de genuíno livre mercado, rapidamente alguém menciona os EUA como
sendo o exemplo mais óbvio deste arranjo.
O
problema é que a comparação é obtusa.
É
verdade que os EUA não possuem um sistema público de saúde de estilo europeu (seja
ele o modelo Beveridge
da Inglaterra ou da Espanha, no qual o estado se encarrega de prover serviços
de saúde em troca do pagamento de impostos, seja ele o modelo Bismarck da Alemanha
e da Áustria, no qual o estado obriga os cidadãos a comprarem um seguro privado
obrigatório e altamente regulado), mas isso não implica que o sistema americano
esteja livre da atuação estatal. Muito
pelo contrário, como será visto.
Em
primeiro lugar, vale ressaltar que os resultados observados no sistema de saúde
americano são um tanto deploráveis: o gasto total com a saúde nos EUA chega a
17% do PIB — quase o dobro do que gasta a maioria dos países europeus —, mas
isso não fez com que seus resultados fossem espetacularmente superiores. Sim, o sistema de saúde americano está na
vanguarda da implantação de novas tecnologias, bem como no uso da medicina
preventiva, mas esses elementos diferenciais não parecem justificar o
gigantesco custo excessivo. Por esse
prisma, o debate sobre a superioridade da saúde pública europeia em relação à
americana pareceria definitivamente encerrado: uma qualidade análoga pela
metade do preço.
Porém,
as coisas não são tão simples quanto os números sugerem. O sistema de saúde americano — como explico
em detalhes extensos em meu livro Una revolución liberal para España — está longe de ser
o representante de um arranjo de livre concorrência.
Para
começar, pelo lado da oferta, a concorrência entre médicos praticamente não
existe. O mercado de médicos é
artificialmente cartelizado. Para ser
médico, você tem de ser aceito pelo conselho profissional da categoria, o qual
tem interesse em manter baixo o número de médicos, pois isso eleva
artificialmente seus salários.
Adicionalmente, um médico tem de adquirir diversos tipos de licenças,
sem as quais ninguém pode exercer a medicina.
A criação de hospitais também sofre o mesmo tipo de regulamentação, o
que dificulta o surgimento de hospitais baratos que poderiam concorrer com os
já estabelecidos. Já as seguradoras de
saúde são, em sua grande maioria, proibidas pelo governo de concorrer entre si
além das fronteiras estaduais. Várias
seguradoras não
podem ofertar seus serviços em mais de um estado do país.
Mas
a coisa piora.
Pelo
lado da demanda, 90% dos gastos em saúde ocorrem por meio de canais que não
são o paciente: mais
especificamente, ocorrem pelas seguradoras e pelo estado. Para se ter
uma ideia desse despautério, na
Espanha, o gasto público com saúde totaliza 6,9% do PIB. Na União
Europeia, 8,2%. Nos EUA, como dito, o gasto total é 17%. Dado que 90%
desses 17% são gastos que não são desembolsados pelo paciente,
temos que 15,3% dos gastos em saúde nos EUA são terceirizados. Ou seja, nem mesmo a Espanha apresenta um
grau tão elevado de socialização da demanda como os EUA.
Mais
especificamente, de cada 100 dólares gastos na saúde americana, 45 dólares são
desembolsados pelas seguradoras, outros 45 dólares pelos programas estatais Medicare (programa
de responsabilidade da Previdência Social americana que reembolsa hospitais e
médicos por tratamentos fornecidos a indivíduos acima de 65 anos de idade) e Medicaid (programa
financiado conjuntamente por estados e pelo governo federal, que reembolsa
hospitais e médicos que fornecem tratamento a pessoas que não podem financiar
suas próprias despesas médicas), e apenas 10 dólares são desembolsados pelo
próprio paciente.
Dito
de outro modo, de cada 100 dólares gastos na saúde, o paciente — que é quem
está realmente recebendo os serviços — arca com um custo de apenas 10
dólares. Quem paga os 90 restantes? O resto de seus compatriotas — seja por meio
do Fisco, seja por meio de suas apólices de seguros, que compreensivelmente
ficam a anualmente mais caras.
Nos
EUA, portanto, não há uma correspondência entre custos e benefícios. E dado que as seguradoras são obrigadas pelo
governo a cobrir até mesmo consultas de rotina, os preços das apólices seguem em disparada. Se você fizer algo tão
simples e corriqueiro quanto um exame de sangue — que é coberto pelos planos
de saúde e pelos programas Medicare e Medicaid —, é comum o hospital cobrar um
preço astronômico do governo ou da seguradora, a qual, por causa disso, irá aumentar
os preços das apólices.
Nesse
arranjo, o incentivo para aumentar os gastos é o mesmo que ocorreria se milhões
de pessoas fossem a um mesmo restaurante, pedissem individualmente os pratos
que quisessem e, no final, dividissem igualmente entre todos a fatura total.
E,
com efeito, o
estudo mais completo já realizado até o presente momento sobre os custos
excessivos da saúde americana não deixa espaço para dúvidas: a explosão dos
custos se deve essencialmente a um crescimento descontrolado da demanda
(direcionada sobretudo à medicina preventiva), a qual é capaz de suportar
preços crescentes devido ao fato de que ninguém — governo, seguradoras e
pacientes, como explicado acima — tem o incentivo de reduzir seus gastos. Por mais que a oferta aumente, a demanda
cresce a uma velocidade superior, o que multiplica os preços.
Vale
ressaltar que, naquelas áreas do sistema de saúde americano em que não há esta
socialização dos gastos — porque os programas estatais ou os seguros não
cobrem —, não se observa nenhum crescimento anormal dos custos. Este é o caso, por exemplo, dos serviços de
odontologia ou das cirurgias
oculares a laser, cujos custos caem ano após ano.
Na
Europa, onde a saúde pública é "gratuita" para o usuário (embora seja cara para
os pagadores de impostos), não ocorrem consequências similares a essas dos EUA
simplesmente porque os políticos e burocratas que comandam o setor racionam os serviços que os cidadãos
podem receber (os famosos cortes de gastos para a saúde, sobre os quais muito
se fala atualmente, sempre foram uma prática estrutural do sistema; apenas se
tornaram mais visíveis agora por causa da crise). No Velho Continente, os donos da saúde dos
cidadãos europeus não são eles próprios, mas sim os políticos e burocratas que
organizam o sistema segundo seus gostos, necessidades e interesses. Daí a frequente ocorrência de fenômenos como listas
de espera, adoção tardia de novas tecnologias, tratamentos e medicamentos não
cobertos, aglomeração de pacientes etc.
Dito
de outra forma: os incentivos perversos para a demanda que levam a uma
hipertrofia dos gastos em saúde nos EUA também existem na Europa, só que, na
Europa, os políticos controlam severamente a oferta e impedem que os gastos
disparem. É como se, ao chegarmos a um
restaurante, o dono do estabelecimento limitasse a quantidade e a qualidade
daquilo que cada comensal pode pedir: por mais que pudéssemos e quiséssemos
pedir mais e melhores pratos, não poderíamos.
Mas,
afinal, que foi o motivo que levou a tamanha socialização da demanda por
serviços de saúde nos EUA? A criação dos
programas estatais Medicare e Medicaid, em 1966, contribuíram substancialmente
para as distorções. Mas o principal
incentivo foi criado em 1954: as empresas passaram a poder descontar no imposto
de renda e na contribuição para a Previdência Social todos os gastos associados
à aquisição de um plano de saúde para seus empregados. Ou seja, caso as empresas pagassem planos de
saúde para seus empregados, elas ganhariam descontos tanto no IRPJ quanto na
contribuição para a Previdência Social.
Isso
gerou uma consequência não-prevista. Os
incentivos para que todo o gasto em saúde fosse canalizado para os seguros
adquiridos por empresas para seus empregados se tornaram enormes. Isso, por conseguinte, elevou
substancialmente a demanda por planos de saúde, os quais foram obrigados pelo
governo a cobrir uma enorme variedade de serviços, inclusive aqueles associados
à medicina preventiva. Os custos das
apólices obviamente dispararam.
Apenas
imagine quanto custaria o seguro do seu carro caso o governo obrigasse as
seguradoras a cobrir serviços como troca de óleo e reabastecimento. Nos EUA, é exatamente isso o que ocorre para
os planos de saúde. E tudo começou
porque as empresas, muito corretamente, queriam reduzir seus gastos com
tributos diretos, um confisco estatal que nem sequer deveria existir. Um perfeito exemplo de como uma intervenção
estatal (impostos sobre a renda) gerou uma grande distorção (redução dos lucros
das empresas) que, por sua vez, levou à criação de uma medida aparentemente
mitigadora (incentivos fiscais para planos de saúde). No final, todo sistema de saúde ficou
desarranjado.
Essa
socialização de 90% dos gastos em saúde nos EUA — toda ela induzida pelo
intervencionismo estatal — é a principal responsável pela hipertrofia dos
preços. Os EUA não são de maneira alguma
um exemplo de livre mercado no sistema de saúde. Em um arranjo de livre mercado e livre
concorrência, os gastos para consultas de rotina são financiados pela própria
poupança do paciente, e somente aqueles eventos de natureza extraordinária e
catastrófica são cobertos por planos de saúde.
O
que o sistema americano ilustra perfeitamente são os efeitos potencialmente
devastadores do estatismo, inclusive quando em doses aparentemente inócuas.
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