Não dá para levar a sério
O Estado de S.Paulo
Não se deve levar a sério quem não leva a sério a si
mesmo. Diante das nuvens que ameaçam carregar de sombras o cenário
eleitoral, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu abrir a
caixa de ferramentas e "partir para cima" de quem ou o que quer que seja
que represente risco para o projeto de perpetuação do PT no poder.
Tem aproveitado todas as oportunidades para exercitar sua conhecida e
inexcedível desfaçatez. Na noite de sábado passado, em entrevista à TV
portuguesa, chegou ao cúmulo, ao interromper a entrevistadora que queria
saber o nível de suas relações com José Dirceu, José Genoino e Delúbio
Soares e sair-se com uma inacreditável novidade: "Não se trata de gente
de minha confiança".
Então está tudo explicado. E toda a Nação tem a obrigação de
reconhecer que o ex-presidente falava a verdade em agosto de 2006,
quando o escândalo do mensalão estourou: "Quero dizer, com franqueza,
que me sinto traído. Não tenho vergonha de dizer ao povo brasileiro que
nós temos que pedir desculpas". O fato de as pessoas (a "gente") a que
Lula se referia serem o seu então ministro-chefe da Casa Civil - na
verdade, um primeiro-ministro ad hoc -, o presidente nacional e o
tesoureiro de seu partido tinha então toda a importância, a ponto de o
presidente se sentir traído.
Mas, em 2006, surfando no prestígio popular garantido pelo sucesso de
seus projetos sociais, Lula reelegeu-se presidente e, cheio de si,
subestimando como de hábito o discernimento das pessoas, começou a,
digamos, mudar de ideia sobre o mensalão.
Afinal, se estava tão bem na foto, por que posar de vítima?
Em novembro de 2009, já na pré-campanha eleitoral do ano seguinte,
passou uma borracha nas declarações anteriores e proclamou diante das
câmeras de televisão: "Foi uma tentativa de golpe no governo. Foi a
maior armação já feita contra o governo".
Exatamente um ano depois, já comemorando a eleição da sucessora que
havia escolhido a dedo, anunciou, onipotente, sua primeira proeza tão
logo deixasse o governo: "Vou desmontar a farsa do mensalão".
Os fatos acabaram demonstrando que Lula não estava com essa bola
toda. Provavelmente até hoje ele não entendeu direito como é que um
colegiado de 11 ministros, dos quais 8 - esmagadora maioria - foram
escolhidos por ele próprio e por sua sucessora, foi capaz de armar uma
falseta dessas contra "nós".
Mas Lula nunca foi de dar bola para os fatos. Quando não gosta deles,
simplesmente os descarta. Prefere criar suas próprias versões.
Uma dessas criativas versões, novidade no repertório do grande
palanqueiro pela precisão quase científica que aparenta conter, foi
revelada nessa entrevista televisiva que concedeu em Lisboa, durante sua
estada em Portugal para as comemorações dos 40 anos da Revolução dos
Cravos. E bota criatividade nisso: "O mensalão teve praticamente 80% de
decisão política e 20% de decisão jurídica". Quer dizer: a Suprema Corte
de Justiça do País tornou-se politicamente cúmplice da "maior armação
já feita contra o governo".
A entrevistadora da TV portuguesa estranhou a esdrúxula divisão, mas o
ilustre personagem não hesitou em, novamente, sacrificar a lógica e a
coerência em benefício de sua cruzada contra o Mal. E encerrou o
assunto: "O que eu acho é que não houve mensalão".
Pelo menos ele está "achando" - não tem a categórica certeza que
demonstrou quando garantiu, na prematura apoteose do pré-sal, que o
Brasil se tornara "autossuficiente" em petróleo.
Outra pérola do pensamento lulista foi oferecida aos telespectadores
quando a entrevistadora provocou o entrevistado sobre o fato de sua
popularidade manter-se incólume enquanto a de sua sucessora despenca.
Ato falho ou exacerbação do ego, Lula sentenciou: "O povo é mais esperto
do que algumas pessoas imaginam".
De resto, o fato de, certamente julgando a partir de seu próprio
exemplo, entender que a "esperteza" é uma grande virtude do povo
brasileiro, Lula dá a exata medida dos valores éticos que cultiva, na
hipótese generosa de que cultive algum.
Levá-lo a sério é cada vez mais difícil.
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