Desigualdade em debate
José Paulo Kupfer - O Estado de S.Paulo
Tornou-se incontornável, neste momento, fazer referência a
Capital no Século XXI, livro do economista francês Thomas Piketty,
ainda não traduzido para o português. A versão em inglês se transformou
num fenômeno mundial, a merecer resenhas, críticas, ensaios e uma
infinidade de reflexões sobre seus achados e suas conclusões.
Com base em novos dados históricos, centrados em informações
tributárias e em tratamento estatístico original, Piketty anuncia o
retorno do "capitalismo patrimonial", face altamente concentradora de
renda, que marcou a expansão acelerada da economia global entre fins do
século 19 e início da Primeira Guerra.
O crescimento econômico daquele período, que coincide com a Belle
Époque europeia e a Era Dourada americana, promoveu, segundo Piketty,
mais do que desigualdade de salários, concentração na propriedade de
ativos, esta representada pela formação ou consolidação de grandes
heranças. Seria esse padrão de expansão desigual que estaria de volta,
nos tempos atuais.
Não deixa de ser intrigante a avassaladora disseminação, neste
momento, do debate acerca da desigualdade de renda, da qual a obra de
Piketty é o gancho propulsor. Deve-se notar, de um lado, que as reações
mais entusiasmadas partiram de economistas liberais (no sentido
americano do termo), mais à esquerda, como os Prêmios Nobel Paul Krugman
e Joseph Stiglitz. Além do mais, não só o resultado dos levantamentos
do economista francês como sobretudo sua proposta para estancar a
tendência à concentração de renda - políticas públicas de caráter
redistributivo, com foco em taxação mais fortemente progressiva, numa
amplitude global - são caros ao Partido Democrata e, em última análise,
ao presidente Barack Obama.
Mas não se pode esquecer que até o FMI, tido como um baluarte do
status quo e do conservadorismo econômico, abriu espaço para a produção
de um estudo sobre a relação entre desigualdade e crescimento. Em
Redistribution, Inequality, Growth (http://migre.me/iXU2G), texto para
discussão de fevereiro deste ano, os autores mostram que a desigualdade
vem crescendo nos países ricos e concluem que essa relação é negativa - a
desigualdade restringe a expansão econômica e, dentro de limites, as
ações pró maior igualdade ajudam a impulsionar o crescimento.
Estava demorando para que a profunda crise instalada em 2008
provocasse revisões teóricas no modo de entender a dinâmica capitalista,
mas faz sentido imaginar que o debate das desigualdades só ficou aceso,
como está agora, com a acentuação das disparidades de renda nos países
desenvolvidos. Capital no Século XXI cai como uma luva nesta hora ao
fazer, justamente, uma crítica sustentada em sofisticada base empírica,
ao sistema econômico que promove o aumento da riqueza nas mãos do "1%
mais rico", transferindo renda dos trabalhadores, inclusive da maior
parte dos mais qualificados, para os detentores de capital - e também
para a pequena parcela de executivos que, no mercado financeiro e nas
grandes corporações, auferem supersalários.
Bem antes de Piketty já se sabia que o capitalismo contemporâneo
tende a concentrar renda e ativos. A estrutura dos mercados, nos dias de
hoje, em que a ação dos oligopólios, principalmente seu poder de
formação de preços, precisa ser confrontada por agências reguladoras e
órgãos de defesa da concorrência, não permite muitas controvérsias.
Pode haver, porém, outras consequências depois dos achados de Capital
no Século XXI. Uma delas diz respeito ao elogio irrestrito da
meritocracia e a definição de políticas que a levem exclusivamente em
conta, na criação de oportunidades de ascensão social. Quando se trata
de mobilidade social, num sistema que tende ao patrimonialismo e no qual
ter o pai ou o sogro certo é mais eficaz para acumular riqueza do que
encontrar o emprego certo, o mérito pessoal isolado não representaria
mais do que uma ilusão.
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