Suleika Jaouad - NYT
Ashley Woo/The New York Times
20.out.2014 - Suleika Jaouad começou aos 22 anos tratamento para leucemia; agora, aos 26, está em remissão. A doença deixou um rastro de problemas para trás, como infertilidade, menopausa prematura, fadiga crônica e outros
"Você está sendo deportada", o cirurgião anunciou para mim no outono passado. Isso é uma coisa assustadora para a filha de dois imigrantes ouvir. Mas ele estava se referindo à retirada da minha porta [port, em inglês, é o equivalente a um cateter para quimioterapia], um dispositivo médico implantado logo abaixo da minha clavícula direita – a porta de entrada para as dezenas de sessões de quimioterapia, antibióticos e transfusões de sangue que entraram no meu corpo desde que fui diagnosticada com leucemia aos 22 anos.Eu adoro um bom trocadilho, mas eu não estava num clima para as risadas e a leveza naquele dia. Depois de três anos e meio de tratamento de câncer, eu não precisava mais do cateter. Meus médicos finalmente tinham declarado que eu estava em remissão. Eu pensei que ia querer comemorar ou dançar uma jiga com camisola hospitalar ou dar uma festa de arromba quando chegasse lá. Mas não senti nada parecido com final de jogo que eu tinha imaginado.
Levou muito tempo para eu conseguir dizer que era uma paciente de câncer. Depois, por muito tempo, eu fui apenas isso: uma paciente de câncer. Agora que concluí meu tratamento, estou lutando para descobrir quem eu sou.
No papel, estou melhor: eu já não tenho câncer, e a cada dia que passa estou ficando mais forte. A enxurrada incessante de consultas médicas, exames de sangue e telefonemas de parentes e amigos preocupados virou uma pequena goteira. Mas fora do papel, estou longe de me sentir uma mulher saudável de 26 anos de idade.
A doença deixou inúmeras marcas invisíveis em seu rastro: infertilidade, menopausa precoce, um problema de tireoide, fadiga crônica e um sistema imunológico enfraquecido que me manda para o pronto atendimento com frequência. E esta é só a lista curta.
Fora isso, tem os demônios de depressão e o medo da recidiva que se esgueiram pela minha cabeça sempre que eu acredito que os dominei. Um machucado estranho na parte de trás da perna. Uma chamada perdida do meu oncologista. Cada um desses gatilhos me arranca da minha nova e frágil realidade e me deixa em dúvida: o que vai acontecer se o câncer voltar? Será que eu vou me sentir normal de novo? E o mais assustador de tudo: como faço para seguir em frente com a minha vida?
Escrever sobre tudo isso não é fácil para mim. É difícil não usar clichês ao falar sobre o câncer. Pode ser ainda mais difícil não achar que eu devo viver de acordo com esses clichês. Às vezes tenho um profundo sentimento de culpa por não ter me esforçado mais para fazer limonada com os limões metafóricos.
Eu sei que eu sou uma das pessoas sortudas, e estou profundamente grata por estar viva. Ao escrever sobre os problemas que estou enfrentando agora, eu me preocupo em parecer ingrata – ou, pior ainda, insensível para com o meus amigos da comunidade do câncer que talvez nunca entrem em remissão. Estes medos tingem os desafios inesperados que surgem durante a vida após o câncer, e podem esmagar a necessidade de falar sobre eles. Afinal, eu deveria estar melhor. Então por quê não me sinto melhor?
Quando terminei meu último ciclo de quimioterapia, em abril de 2014, amigos e parentes me parabenizaram por ter "acabado". O que eles não tinham como saber era que, em alguns aspectos, a parte mais difícil da minha experiência com o câncer começou depois que o câncer desapareceu.
As primeiras semanas depois que terminei o tratamento transcorreram como um circo de horrores. Fui hospitalizada quatro vezes por causa de uma colite causada pela bactéria Clostridium difficile, uma infecção intestinal com risco de vida que eu contraí por causa do meu sistema imunológico enfraquecido. Meu relacionamento de três anos e meio com meu namorado chegou ao fim. E Melissa Carroll, uma das minhas melhores amigas, que eu havia conhecido através da blogosfera, morreu de câncer aos 32 anos.
Durante o tratamento, eu estava cercada pelo melhor exército do mundo: o apoio da família e dos amigos e uma brilhante equipe médica que trabalhou incansavelmente para me manter viva. O objetivo era curar o câncer. Agora que eu tinha sobrevivido ao tratamento de "cortar, envenenar e queimar" da doença, eu não tinha mais toda a cavalaria correndo atrás de mim. De repente, eu me vi atordoada e sozinha nos escombros, me perguntando o que tinha acontecido e para onde tinha ido todo mundo.
Eu desmoronei da forma como o autor John Green diz que as pessoas se apaixonam: "lentamente, e depois de uma só vez". Tive alta do hospital em 16 de maio de 2014, que coincidentemente estava marcado para ser o dia em que meu ex-namorado sairia do apartamento que nós dividíamos em Manhattan. "Você deveria chorar", eu fiquei dizendo a mim mesma depois que ele foi embora. Mas eu não consegui.
Eu vagava pelo apartamento, inspecionando com calma os armários vazios e gavetas deixadas para trás. Em uma delas, encontrei um velho maço empoeirado de cigarros. Eu sabia que não devia, mas acendi um de qualquer maneira. Fumei lentamente, sentada de pernas cruzadas no chão da cozinha, com a pulseira do hospital ainda enrolada no pulso. A estrutura interior que tinha me mantido forte e corajosa durante meu tratamento tinha ruído. Eu já não queria ser a inspiração de ninguém.
Passei o último ano da minha vida em busca da Suleika AC (antes do câncer). Eu a procurei por toda a cidade de Nova York – os velhos bares que ela costumava frequentar, o café onde ela saiu com o ex-namorado pela primeira vez, o apartamento em cima da placa Pear Paint, na Canal Street, que ela dividiu com dez colegas em seu primeiro verão fora da faculdade – porém, quanto mais eu procuro, mais começo a perceber que ela deixou de existir. Não há como voltar para minha vida antiga. O problema é que eu também não sei como seguir adiante.
Eu não sou a única que se sente assim. Um corpo cada vez maior de estudos sugere que os sobreviventes continuam lutando com problemas médicos, financeiros, profissionais e psicossociais muito tempo depois de terminar o tratamento contra o câncer.
Para muitos, a experiência proporciona um sentido e propósito de vida renovados, mas a tarefa de reconstruir a vida depois de algo tão devastador como o câncer também pode ser profundamente desorientadora e desestabilizadora.
Um relatório do ano passado da American Cancer Society, feito em colaboração com o Instituto Nacional do Câncer, estima que existam cerca de 14,5 milhões sobreviventes de câncer vivos nos Estados Unidos hoje, e esse número vai crescer para quase 19 milhões em 2024.
Embora cada vez mais norte-americanos estejam sobrevivendo câncer graças a programas de detecção precoce, novos regimes de tratamento e campanhas de conscientização, ainda há muito aprender sobre as questões de curto e de longo prazo que os sobreviventes enfrentam. Com a sobrevivência a longo prazo vem um novo desafio: como manter os sobreviventes de câncer saudáveis e emocionalmente estáveis depois do fim do tratamento.
"Gostamos de pensar no final do tratamento do câncer como o fim de um capítulo, mas o que a maioria das pessoas não percebe é que a luta emocional continua muito tempo depois", disse-me recentemente por telefone o Dr. Kevin C. Oeffinger, clínico geral e diretor do programa de acompanhamento contínuo de adultos do Centro de Câncer do Memorial Sloan Kettering.
"A depressão pós-tratamento e a ansiedade são surpreendentemente normais. Eu iria mais longe e diria que, se você não as tem, isso sim é uma surpresa."
Falei com Xeni Jardin, uma jornalista que escreve frequentemente sobre suas experiências com o câncer de mama, sobre como é a vida pós-tratamento para ela. Venho acompanhando-a no Twitter desde o meu diagnóstico, e seus textos brutalmente honestos bem-humorados e muitas vezes de partir o coração têm sido uma inspiração para mim.
"Aprendi desde o dia do meu diagnóstico que o câncer afeta tudo o que somos", Jardin me disse. "Não houve nenhum aspecto da minha vida que não foi dilacerado enquanto meu corpo era literalmente dilacerado. No meu caso, depois que o tratamento terminou, tive problemas de saúde mental que foram muito mais intensos e debilitantes do que eu já tinha experimentado antes na vida.
"Essa coisa que nós vivenciamos e que costuma ser chamada de depressão pós-tratamento é muito mais do que apenas isso. Ela tem muitas facetas: espiritual, psicológica, social, médica e financeira, entre muitas outras coisas."
Embora um número crescente de centros de tratamento de câncer tenham começado a oferecer planos de saúde pós-tratamento e grupos de apoio para ajudar os pacientes a passar por esses desafios, muitos pacientes continuam negligenciados.
"Às vezes fazemos um bom trabalho preparando as pessoas para isso, mas muitas vezes não", disse Oeffinger. "Precisamos fazer um trabalho melhor."
"Todo mundo que nasce tem dupla cidadania, do reino dos sãos e do reino dos doentes", diz a passagem famosa de Susan Sontag em "A Doença como Metáfora". Mas ela não fala sobre esta terra de ninguém que existe entre o dois reinos, habitada por pessoas como eu, que não estão doentes nem sãs. É um tipo diferente de deportação em relação àquela a que o cirurgião estava se referindo: é uma viagem através da selva da sobrevivência.
Desta vez eu estou achando que não existem protocolos nem instruções para alta, não há roteiros nem planos de 12 passos para me guiar de volta ao reino dos sãos. Esse caminho de volta será só meu.
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