Tiago Moreira de Sá - Público
A crise do Euro, se serviu para evidenciar a hegemonia alemã, também deixou manifesta em vários momentos a benignidade dessa liderança
Em 1870, depois de ter concluído a unificação da Alemanha, Otto von Bismarck percebeu que ela era demasiado poderosa para não ameaçar todos os outros Estados da Europa e construiu um sistema de autocontenção do poder alemão alicerçado num emaranhado de alianças – com a Áustria-Hungria, a Rússia e a Itália –, na abdicação de mais pretensões territoriais no continente europeu e na renúncia à expansão colonial (até meados da década de 1880).
Desta forma, fez com que o custo de uma coligação de contrabalanceamento a Berlim fosse superior ao seu benefício, impedindo que britânicos, franceses, russos e austríacos tivessem o incentivo para se juntarem contra a Alemanha unificada.
Numa altura em que cresce o
sentimento anti-alemão na Europa e todos os dias são publicados nos
meios de comunicação social artigos a denunciar o perigo vindo da
Alemanha, algo muito ampliado pela corrente crise grega, importa ter
presente uma ideia essencial: a actual hegemonia alemã é benigna. Como a
história do século XX demonstra, podia não ser, mas é. E a memória
histórica contribui muito para que a larga maioria das elites alemãs
esteja empenhada que assim seja e continue a ser.
O conceito de hegemonia benigna foi desenvolvido pela teoria das relações internacionais, em especial por G. John Ikenberry, para retratar uma ordem internacional liberal, pluralista e aberta, assente em princípios democráticos e em mecanismos de autocontenção do poder dos Estados dominantes, na qual todos têm lugar e voz, participando no essencial do processo de tomada de decisão. Assim, apesar da existência de uma potência hegemónica, os outros países têm não só oportunidade para buscarem a prossecução dos seus princípios e interesses, como passam a ter possibilidade de se colocarem na melhor posição possível para influenciarem o próprio processo de tomada de decisão do hegemon.
Tal como a ordem internacional norte-americana do pós-1945 que inspirou Ikenberry, a ordem regional europeia alemã actual encaixa nesta categoria. A Alemanha dos nossos dias deve ser definida como uma potência hegemónica benigna, o que resulta tanto do facto de estar sujeita a uma contenção – e autocontenção – a vários níveis, como da sua continuada aposta no espaço pluralista e em muitos aspectos supranacional que é a UE.
A contenção de Berlim é feita no essencial a três níveis. Em primeiro lugar, ela é contida militarmente, desde logo por se tratar de uma dimensão onde não está sequer em causa a perspectiva da sua hegemonia, que pertence sim aos Estados Unidos, como também devido à sua permanência na NATO, liderada pelos norte-americanos. Em segundo lugar, é contida politicamente (e, em teoria, economicamente) pelos mecanismos institucionais da ordem europeia comunitária, aceitando partilhar o seu poder externo com outros Estados-membros no contexto do processo de tomada de decisão comunitário, sofrendo ainda, através deste, a influência desses outros Estados na definição da sua política interna, uma vez que as normas comunitárias têm aplicação doméstica e sobrepõem-se ao seu direito. Em terceiro lugar, é contida pela sua própria cultura política, desenvolvida historicamente a partir da Segunda Guerra Mundial e em resultado de muitos dos seus traumas, que se caracteriza pela pouca apetência dos dirigentes de Berlim para assumirem uma liderança ao nível internacional, o que se vê no esforço que levam a cabo para manter formalmente o eixo franco-alemão (não obstante o declínio evidente da França), ou nos gastos anormalmente baixos em forças armadas para uma potência da sua dimensão, ou ainda na postura pouco dada a intervenções militares, como ficou patente durante a invasão do Iraque, em 2003 e, mais recentemente, durante a intervenção da NATO na Líbia.
Há também vários motivos para concluirmos que a hegemonia alemã no contexto da União Europeia é benigna. Desde logo, é de realçar o compromisso da Alemanha com a continuação da integração europeia e das suas instituições, das quais são de destacar as que se enquadram no âmbito da nuclear zona Euro. É importante que se lembre que a UE tem oferecido um enquadramento propiciador do desenvolvimento económico alemão e mesmo do seu poder, mas também não se deve esquecer que a Alemanha é o único Estado-membro que se poderia dar ao luxo de abdicar da Europa comunitária e permanecer como potência regional altamente relevante. Assim, é significativa a opção de Berlim por continuar a limitar a sua liberdade de decisão no plano externo e interno ao aceitar partilhá-la com os outros países da UE. Mas a benevolência da hegemonia alemã revela-se também no comportamento dos restantes Estados europeus, em particular das grandes potências como a França e a Grã-Bretanha, que tendo a possibilidade de fazer coligações com capacidade para contrabalançarem Berlim simplesmente têm optado por não o fazer, residindo a resposta no facto de considerarem que beneficiam da liderança desta, ou pelo menos que o custo de confrontá-la e surgir com alternativas excede o benefício de não o fazer.
A crise do Euro, se serviu para evidenciar a hegemonia alemã, também deixou manifesta em vários momentos a benignidade dessa liderança, não obstante a impressão de pontual intransigência. Se, por um lado, o governo alemão tem persistido na rejeição da revisão do Tratado Orçamental ou da possibilidade de mutualização das dívidas soberanas dos Estados-membros, por outro lado, tem também dado vários sinais de compromisso com a resolução da crise, como no momento de pagar a maior parte do preço do resgates dos países em dificuldade, na aprovação do Mecanismo de Estabilidade Europeu, na criação da União Bancária, na aceitação de uma política Quantitative Easing por parte do BCE, para já não falar na abertura à revisão dos “programas de austeridade” traduzida no prolongamento das maturidades e na descida dos juros, ou mesmo, no caso grego, perdão de dívida.
Desta forma, ao contrário do que é a percepção geral, na prática a Alemanha tem afirmado a sua visão de resolução da crise manifestando o compromisso com a continuidade de uma zona Euro que inclua todos os membros actuais (o que, para a esmagadora maioria dos governantes alemães, a começar por Angela Merkel, significa também a Grécia), ainda que sem deixar de o fazer com o estabelecimento das suas normas. De facto, este revela-se como um momento em que Berlim abraça um papel de potência ordenadora, procurando que a ordem europeia pós-crise seja estruturalmente diferente do ponto de vista das políticas económicas e financeiras, de uma forma que ostente a sua marca, mas sem deixar de obedecer a um pressuposto de abertura e inclusividade.
Tal não impede que os alemães devam mostrar maior abertura à participação dos outros países nas soluções para o final da crise, algo que até funcionaria como mensagem de que a sua liderança continuará a ser benevolente, de que a sua autocontenção permanecerá efectiva e de que o seu compromisso com a UE e com uma visão desta como comunidade de povos continua a prevalecer. Mas, por muito que tal seja politicamente incorrecto, com as devidas diferenças, deve considerar-se que a Alemanha hoje, como nos tempos de Bismarck, é benigna.
O conceito de hegemonia benigna foi desenvolvido pela teoria das relações internacionais, em especial por G. John Ikenberry, para retratar uma ordem internacional liberal, pluralista e aberta, assente em princípios democráticos e em mecanismos de autocontenção do poder dos Estados dominantes, na qual todos têm lugar e voz, participando no essencial do processo de tomada de decisão. Assim, apesar da existência de uma potência hegemónica, os outros países têm não só oportunidade para buscarem a prossecução dos seus princípios e interesses, como passam a ter possibilidade de se colocarem na melhor posição possível para influenciarem o próprio processo de tomada de decisão do hegemon.
Tal como a ordem internacional norte-americana do pós-1945 que inspirou Ikenberry, a ordem regional europeia alemã actual encaixa nesta categoria. A Alemanha dos nossos dias deve ser definida como uma potência hegemónica benigna, o que resulta tanto do facto de estar sujeita a uma contenção – e autocontenção – a vários níveis, como da sua continuada aposta no espaço pluralista e em muitos aspectos supranacional que é a UE.
A contenção de Berlim é feita no essencial a três níveis. Em primeiro lugar, ela é contida militarmente, desde logo por se tratar de uma dimensão onde não está sequer em causa a perspectiva da sua hegemonia, que pertence sim aos Estados Unidos, como também devido à sua permanência na NATO, liderada pelos norte-americanos. Em segundo lugar, é contida politicamente (e, em teoria, economicamente) pelos mecanismos institucionais da ordem europeia comunitária, aceitando partilhar o seu poder externo com outros Estados-membros no contexto do processo de tomada de decisão comunitário, sofrendo ainda, através deste, a influência desses outros Estados na definição da sua política interna, uma vez que as normas comunitárias têm aplicação doméstica e sobrepõem-se ao seu direito. Em terceiro lugar, é contida pela sua própria cultura política, desenvolvida historicamente a partir da Segunda Guerra Mundial e em resultado de muitos dos seus traumas, que se caracteriza pela pouca apetência dos dirigentes de Berlim para assumirem uma liderança ao nível internacional, o que se vê no esforço que levam a cabo para manter formalmente o eixo franco-alemão (não obstante o declínio evidente da França), ou nos gastos anormalmente baixos em forças armadas para uma potência da sua dimensão, ou ainda na postura pouco dada a intervenções militares, como ficou patente durante a invasão do Iraque, em 2003 e, mais recentemente, durante a intervenção da NATO na Líbia.
Há também vários motivos para concluirmos que a hegemonia alemã no contexto da União Europeia é benigna. Desde logo, é de realçar o compromisso da Alemanha com a continuação da integração europeia e das suas instituições, das quais são de destacar as que se enquadram no âmbito da nuclear zona Euro. É importante que se lembre que a UE tem oferecido um enquadramento propiciador do desenvolvimento económico alemão e mesmo do seu poder, mas também não se deve esquecer que a Alemanha é o único Estado-membro que se poderia dar ao luxo de abdicar da Europa comunitária e permanecer como potência regional altamente relevante. Assim, é significativa a opção de Berlim por continuar a limitar a sua liberdade de decisão no plano externo e interno ao aceitar partilhá-la com os outros países da UE. Mas a benevolência da hegemonia alemã revela-se também no comportamento dos restantes Estados europeus, em particular das grandes potências como a França e a Grã-Bretanha, que tendo a possibilidade de fazer coligações com capacidade para contrabalançarem Berlim simplesmente têm optado por não o fazer, residindo a resposta no facto de considerarem que beneficiam da liderança desta, ou pelo menos que o custo de confrontá-la e surgir com alternativas excede o benefício de não o fazer.
A crise do Euro, se serviu para evidenciar a hegemonia alemã, também deixou manifesta em vários momentos a benignidade dessa liderança, não obstante a impressão de pontual intransigência. Se, por um lado, o governo alemão tem persistido na rejeição da revisão do Tratado Orçamental ou da possibilidade de mutualização das dívidas soberanas dos Estados-membros, por outro lado, tem também dado vários sinais de compromisso com a resolução da crise, como no momento de pagar a maior parte do preço do resgates dos países em dificuldade, na aprovação do Mecanismo de Estabilidade Europeu, na criação da União Bancária, na aceitação de uma política Quantitative Easing por parte do BCE, para já não falar na abertura à revisão dos “programas de austeridade” traduzida no prolongamento das maturidades e na descida dos juros, ou mesmo, no caso grego, perdão de dívida.
Desta forma, ao contrário do que é a percepção geral, na prática a Alemanha tem afirmado a sua visão de resolução da crise manifestando o compromisso com a continuidade de uma zona Euro que inclua todos os membros actuais (o que, para a esmagadora maioria dos governantes alemães, a começar por Angela Merkel, significa também a Grécia), ainda que sem deixar de o fazer com o estabelecimento das suas normas. De facto, este revela-se como um momento em que Berlim abraça um papel de potência ordenadora, procurando que a ordem europeia pós-crise seja estruturalmente diferente do ponto de vista das políticas económicas e financeiras, de uma forma que ostente a sua marca, mas sem deixar de obedecer a um pressuposto de abertura e inclusividade.
Tal não impede que os alemães devam mostrar maior abertura à participação dos outros países nas soluções para o final da crise, algo que até funcionaria como mensagem de que a sua liderança continuará a ser benevolente, de que a sua autocontenção permanecerá efectiva e de que o seu compromisso com a UE e com uma visão desta como comunidade de povos continua a prevalecer. Mas, por muito que tal seja politicamente incorrecto, com as devidas diferenças, deve considerar-se que a Alemanha hoje, como nos tempos de Bismarck, é benigna.
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