segunda-feira, 2 de julho de 2012

A CRISE FINANCEIRA ESTÁ DEVASTANDO A ESPANHA

Com a crise do euro, cidade espanhola está a um passo da falência
Walter Mayr - Der Spiegel
Índice de desemprego em La Línea, uma cidade espanhola vizinha ao próspero território britânico de Gibraltar, chega a 40%
Muitos lugares na Espanha estão sofrendo com a crise do euro, mas poucos foram tão duramente atingidos quanto La Línea, uma cidade espanhola vizinha ao próspero território britânico de Gibraltar. Com a cidade em vias da falência, muitos moradores passaram a se dedicar ao contrabando para ganhar dinheiro.
Os moradores de La Línea de la Concepción estão partindo, como ratos que deixam o navio.
Eles estão cruzando a fronteira aos milhares desde cedo de manhã, primeiro as empregadas domésticas, babás e operários da construção civil; depois, os contrabandistas. Todos querem sair da Espanha, pelo menos por algumas horas. Há trabalho do outro lado da fronteira, no território britânico de Gibraltar, e o trabalho traz a esperança de uma vida melhor.
Cerca de 11h da manhã, no que promete ser um dia quente do início do verão, o trânsito do lado espanhol já se estende da fronteira, pela estrada costeira até a prefeitura. Ali, a prefeita Gemma Araujo está tentando manter o forte, em seu escritório no segundo andar, que tem uma vista para a caravana de pessoas indo trabalhar. Araujo tem 33 anos, é socialista e a primeira mulher no cargo. Não é exatamente o papel mais gratificante na Espanha. "Um tsunami" de crise atingiu La Línea, diz Araujo, e a situação é mais séria do que nunca. "Nossa cidade não está falida, mas quase".
A prefeitura não conseguiu pagar seus funcionários em oito dos últimos nove meses. Nesta manhã, a prefeita encontrou um aviso na frente da porta do escritório dela com uma demanda clara: "Pague ou renuncie". A casa dela foi alvo de ataques com ovos e cercada por manifestantes, e uma multidão botou fogo no carro da secretária dela.
Cidade sem lei
La Línea já tinha chegado às manchetes nos anos 80 e 90, durante o governo socialista dos predecessores da Arajujo, quando foi chamada de "cidade sem lei". Nessa época, traficantes, contrabandistas e outros criminosos ganhavam a vida nesta cidade da Andalusia. Os conservadores chegaram ao poder em 1995, com membros do populista Grupo Independiente Liberal (GIL) e, principalmente, políticos do Partido do Povo, de centro-direita. A calma retornou a cidade por um tempo.
Mas as contas não pagas daqueles dias acabaram se tornando um problema, diz Araujo. O número de pessoas empregadas pela prefeitura dobrou durante o governo conservador. Dezenas de policiais, 24 advogados e oito psicólogos, assim como consultores e amigos leais, todos ganharam empregos. De acordo com certos registros, alguns dos funcionários da prefeitura estavam ganhando 90.000 euros (em torno de R$ 225.000) por ano, sem dedicação exclusiva. Em 15 anos, a cidade tinha aumentado sua dívida em mais de cem vezes.
A cidade foi pilhada à luz do dia e ninguém se responsabilizou
Pouco antes dela entrar no cargo, no início de 2011, "caminhões de documentos foram queimados. Nós fotografamos", diz a prefeita. As dívidas se acumularam com o tempo, diz Araujo quase com prazer, já que o partido dela estava na oposição na época. Havia "120 milhões de euros em dívidas com empresas privadas, 45 milhões de euros em multas não pagas e 39 milhões de euros em dívidas com o sistema de seguridade social, de contribuições dos funcionários não recolhidas".
Essa dívida, diz Araujo, é a razão pela qual o governo nacional agora está se recusando a enviar à cidade os 15 milhões de euros anuais dos impostos. Então, a prefeitura de La Línea não consegue mais pagar os salários. La Línea, uma cidade com 65.000 habitantes, agora tem uma dívida per capita de quase 3.000 de euros - é a mais alta da Espanha, depois de Madri.
O desemprego em La Línea está em torno de 40%. Em comparação, o desemprego oficial na Alemanha é de 6,7%, enquanto a média de toda a Europa, que inclui os ditos países problemas, como Romênia e Bulgária, está atualmente em 10,3%. A Espanha, contudo, está com 24,4% de desemprego no país, e a comunidade autônoma de Andalusia está na frente. A pior província dentro da Andalusia é Cadiz, que inclui La Línea.
Ressaca após a festa
Será que o destino de única cidade pode servir de exemplo que reflete a crise em todo o país, como se fosse uma bactéria isolada sob o microscópio? Em uma crise que é tão severa que ameaça a existência contínua do euro, se não da União Europeia como um todo?
Na Espanha, diferentemente da Grécia e da Itália, a razão entre dívida e PIB é relativamente baixa. A dívida privada, contudo, é substancial, o que explica os atuais problemas dos bancos espanhóis. O primeiro-ministro conservador, Mariano Rajoy, no cargo desde dezembro, agora está sendo urgentemente aconselhado a tirar vantagem de um pacote de resgate europeu com condições de empréstimo privilegiadas, para que possa gastar mais dinheiro no que é verdadeiramente importante: combater o desemprego e fazer a economia voltar a andar.
Mas e se as verdadeiras raízes da situação da Espanha não estiverem no radar dos especialistas financeiros mundiais? E se não forem apenas os custos dos empréstimos nos mercados de capital que estão dificultando uma melhora rápida, mas também razões estruturais e históricas? Um passeio por La Línea revela um país que ainda parece estar se recuperando de um período de intensa intoxicação.
O incorporador multimilionário de La Línea que se enforcou, deixando para trás prédios não concluídos em pontos importantes, é emblemático da crise espanhola. Os prédios são lembretes silenciosos de uma época em que o crédito barato alimentou a ilusão que todos na Espanha poderiam ter seu imóvel próprio. "Não apenas compramos casas e apartamentos à prestação", diz a autora Elisabeth Iborra, com um toque de amargura. "As pessoas também tinham o direito de ter os móveis certos".
O retrato da crise também inclui uma rivalidade antiga entre as "duas Espanhas", a da esquerda e a da direita. Suas atitudes praticamente irreconciliáveis tornam difícil alcançar os acordos necessários para combater a crise. Se a esquerda está no poder na cidade (La Línea) e na região (Andalusia), mas não na província (Cadiz) e não em Madri, a política vira um funil duplamente entupido, quando nada sai pelo buraco.
Oeste Selvagem sem o ouro
Finalmente, o retrato da crise inclui a diferença de prosperidade. Na Espanha, o Norte carrega uma cruz pelo Sul. No caso da La Línea, uma das razões é que 85% dos jovens desempregados não têm treinamento profissional; mais de um em cada três desempregados não terminou o ensino médio; e o maior empregador, a prefeitura, não está pagando os salários. O fato que muitas pessoas "preferem fazer 200 euros por dia contrabandeando cigarros do que 400 por mês como trabalhadores sem qualificação em um supermercado" não torna as coisas mais fáceis, como disse um policial da Guarda Civil na fronteira.
A prefeita Araujo mantém a linha do partido e não culpa os indivíduos. Em março, durante uma cerimônia na capital provinciana de Cadiz, ela abordou o rei Juan Carlos e deu-lhe uma carta. Nela, explicou o "drama social" em La Línea e as "verdadeiras tragédias" que as famílias dos funcionários da cidade enfrentam sem renda e pediu ajuda.
O monarca passou a carta para seu assistente e foi caçar elefantes em Botsuana, onde famosamente fraturou a bacia. Em La Línea, eles nunca mais tiveram notícias do rei, e tudo permaneceu igual.
Algumas partes da região parecem as cidades fantasmas do Oeste Selvagem, depois da partida dos garimpeiros. Quando cinco carros de polícia de sirenes ligadas aparecem à luz do dia para uma batida no distrito portuário de La Atunara, um ponto favorito de traficantes de tabaco e drogas, os moradores enchem as ruas e silenciosamente fazem uma falange hostil para a polícia.
E quando os paramédicos do tribunal tiram uma mulher sem teto quase morta do Audi confiscado que ela chama de casa, não é porque os transeuntes alertaram os serviços de emergência. É porque os assistentes sociais que estavam distribuindo frango assado aos necessitados no centro deserto da cidade tarde da noite conseguiram chamar uma ambulância em tempo.
"O traseiro da Europa"
La Línea é mais animada de manhã. Ou pelo menos é animada na frente do bar onde as matuteras estão preparando-se para cruzar a fronteira. As matuteras são contrabandistas que trazem cigarros baratos do território britânico a centenas de metros de distância. Mulheres obesas prevalecem entre as contrabandistas, porque é mais fácil para elas esconderem alguns pacotes de cigarros em várias partes do corpo sem serem notadas.
As mulheres partem para a fronteira. As mais experientes usam sua identidade pendurada no pescoço, para que não tenham que procurá-la toda vez que cruzam a fronteira. Cada pessoa pode trazer um pacote de cigarros. As que não são revistadas e registradas trocam de roupa no lado espanhol e voltam para Gibraltar.
Isso ajuda a explicar porque tem uma fila tão grande na frente do quiosque "Parody", uma barraca discreta do lado britânico da fronteira de arame farpado. Um total de 25,90 euros é pago por um pacote de Marlboro. Então os contrabandistas cruzam novamente a fronteira, passando pelos agentes alfandegários espanhóis, que não são motivados. Eles lucram 4 euros por pacote. Os operadores dos quiosques do lado espanhol, que venderão os cigarros depois, ganham outros 6 euros. O preço de venda seria ainda 9 euros mais caro, mas o preço de venda não importa mais em La Línea, onde cinco das várias lojas de cigarro faliram.
O que mais há para contrabandear? La Línea não tem fábricas, não tem pontos turísticos nem hotéis de luxo em praias brancas. "Somos o traseiro da Europa", diz um morador.
Mas a economia paralela ainda é uma atração. Famílias inteiras da Andalusia fazem excursões de final de semana para La Línea, diz um tenente da Guardia Civil. "Eles vêm de Sevilha ou Jerez de manhã, enchem o tanque com gasolina barata em Gibraltar e comem a comida que trouxeram em vasilhames plásticos. Depois eles atravessam a fronteira em grupos de cinco e trazem de volta cigarros, até fazerem 300 euros de lucro. Isso é o suficiente para viverem mais uma semana em casa".
"Estávamos no caminho errado"
Os moradores locais estão acostumados a buscar outras fontes de alimentos. Por exemplo, eles visitam o quintal da igreja San Pio X. Ali, o Padre Rafael Pinto dirige o programa de alimentos Caritas de La Línea. Nesta manhã, há uma van de entrega no quintal cheia de feijão branco e leite em caixa. O programa também oferece frutas e arroz, brinquedos, sapatos e roupas.
O Caritas já fornece assistência regular para 500 famílias em La Línea, e os números continuam a crescer. Eles também incluem funcionários da prefeitura. Em alguns casos, o Caritas até paga o aluguel e a conta de luz. Em geral, cada obstáculo e desafio também é uma oportunidade, disse o Padre Rafael. "Talvez esta crise nos ajude a compreender que estivemos no caminho errado nos últimos anos e que é hora de dar a volta. Na Espanha, tudo girava em torno de ter e não de ser. Os valores cristãos deram lugar ao consumismo".
Cidadãos afetados e voluntários em La Línea dizem que as coisas estão degringolando rapidamente. Primeiro, as pessoas perdem o emprego, ou mantêm o emprego, mas perdem o salário, como no caso dos funcionários da prefeitura. Depois, seus carros são apreendidos, seus telefones celulares são desconectados e sua eletricidade, desligada. Para a maior parte das pessoas, o pagamento das prestações da casa é sua destruição. Se as famílias não se ajudassem entre si, mais pessoas teriam perdido suas casas há muito tempo.
No albergue Hogar Betania, que também é dirigido pela Caritas, todas as 14 vagas estão tomadas. As pessoas sem sorte são trazidas, tratadas e alimentadas. Elas devem voltar a andar com as próprias pernas após um ano. "A crise acelerou muito o declínio social", diz Begoña Arana, diretora do albergue. 'Em 2011, já tínhamos 575 homens e 105 mulheres sem teto em La Línea. Ainda assim, teremos que fechar esse albergue no final de junho, a não ser que haja um milagre. O novo governo socialista de Andaluzia não está mais enviando dinheiro."
"Eles não levantam um dedo depois de duas da tarde"
Do outro lado da rua, na filial local do Ministério do Trabalho, homens e mulheres estão fazendo fila para tirar documentos certificando que são destituídos e, portanto, têm direito à assistência. Há trabalhadores de colarinho branco na fila. Uma secretária que chegou a La Línea do centro da Espanha anos atrás mal pode esconder sua consternação com as condições do Sul. "Estamos vivendo em um país que os servidores públicos não podem ser despedidos, mas tampouco recebem".
Isso é verdade, até certo ponto. A maior parte dos servidores públicos ainda está empregada, mas como seu trabalho é de apenas algumas horas por dia, não são muito populares entre as pessoas comuns. Por exemplo, o pessoal do departamento de segurança social de La Línea está comendo e bebendo alegremente no restaurante de frutos do mar "Hermanos Tomilleros", às 15h. O garçom olha para eles de cara feia e diz: "Eles não levantam um dedo depois de duas da tarde. Isso é a Espanha".
Outra coisa típica da Espanha foi a dificuldade para a saída das procissões tradicionais magníficas conduzidas durante a Páscoa neste ano. Dos 111 policiais em La Línea, primeiro 32 e, no início da semana da Páscoa, 52 estavam em licença -quase metade de toda a força policial.
De seu escritório com ar condicionado, José Luis Landero Mateos fica de olho nas pessoas em La Línea que estão em pior situação que os servidores públicos. As câmeras de vigilância enviam imagens das salas de espera lotadas nos centros de emprego na rua Saragossa diretamente para a tela do computador dele.
Landero Mateos é diretor da agência. Quando não está tomando café ou fora do escritório para reuniões importantes, ele se dispõe a falar da situação em sua cidade, desde que as perguntas sejam submetidas previamente por escrito. "Tivemos 10.820 pessoas desempregadas no mês passado", diz o diretor desanimado. "Este é um dado histórico. Muitos estão tão desesperados que ficam agradecidos por ter alguém que os ouça".
Um bom vizinho
Talvez tenham decidido por cinismo colocar duas esculturas metálicas de Don Quixote e Sancho Panza, as figuras literárias do romance de Cervantes, no saguão da prefeitura de La Línea. A prefeita Araujo, de qualquer forma, é forçada a passar pelas duas figuras tristes todos os dias.
Neste dia, o motorista dela a leva para o outro lado da fronteira para Gibraltar no último carro oficial que resta. Uma visita a Gibraltar, diz Araujo, "é uma visita a um bom vizinho". Também é uma breve excursão a um mundo diferente, apesar de ela não dizer isso. É um mundo com um índice de crescimento de 6% e uma das mais altas taxas de geração de valor per capita do mundo.
A avenida Winston Churchill vai do aeroporto de Gibraltar, onde pousam voos de Londres e Manchester, até o centro de Gibraltar, passando por dezenas de fachadas com bandeiras e retratos da rainha Elizabeth 2ª. Mais de 10.000 espanhóis, menos da metade deles com permissão de trabalho, pegam essa rota durante a semana -pela manhã e à tarde. É a estrada que atravessam para ganhar a vida.
Um deles, um oficial da Guarda Civil, tem um segundo emprego como jardineiro de um médico em Gibraltar. Outros são empregados domésticos de residências de luxo na área em torno da Marina Queensway Quay: os multimilionários da indústria de jogos online.
Antes de fazerem sua visita ocasional à sede da empresa em Gibraltar, voando de Londres ou Tel Aviv, seus pisos são encerados e suas geladeiras estocadas nos apartamentos e casas -por empregados que cruzam a fronteira de La Línea para garantir que tudo esteja em ordem. Os trabalhadores ganham cerca de $ 8 euros por hora, mas não têm renda quando os proprietários das casas de luxo estão fora.
Ajuda aos animais
Nem mesmo em Nova York, entre o Central Park e o Bronx, os ricos e os pobres estão tão próximos quanto em Gibraltar. Ruth Parasol, atualmente a mulher mais rica de Gibraltar, começou do nada na indústria de sexo por telefone e pornografia na internet e se tornou a fundadora da Party Gaming Plc. Com o marido, Parasol hoje controla uma fortuna estimada em 700 milhões de libras.
Parasol dedica uma pequena quantia do seu dinheiro para ajudar a zona do euro ou, mais precisamente, a cidade vizinha de La Línea. Sua obra caridade, Bonita, atualmente está patrocinando a construção de um novo parquinho do outro lado da fronteira, no parque Reina Sofia, onde dormem algumas pessoas sem teto. A obra também fornece fundos para o atendimento de animais abandonados em La Línea.
O governador da rainha em Gibraltar, Fabian Picardo, está em seu escritório, decorado com a bandeira do Reino Unido. "Mesmo que tudo esteja ruindo à nossa volta", diz ele, o modelo de Gibraltar sobreviverá, com "um mercado de trabalho aberto e a coexistência pacífica de povos e religiões". Ele também tem sérias preocupações, contudo, com o bem estar da vizinha Espanha.
Se a Espanha sair da UE, o que eu espero que não aconteça, as consequências serão dramáticas -não apenas para nós aqui em Gibraltar, mas para a Europa como um todo".
Tradutor: Deborah Weinberg

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