terça-feira, 3 de julho de 2012

Deve o governo tomar as decisões por você?
Bruno Garschagen - OL
David Boaz, no recém-lançado Manifesto Libertário (São Paulo: Peixoto Neto, 2012), afirma que a questão política fundamental para os libertários é se “você toma as decisões que são importantes para sua vida, ou outra pessoa as toma por você?” Segundo Boaz, “os libertários acreditam que os indivíduos têm tanto o direito quanto a responsabilidade de tomar suas próprias decisões” e os “não libertários de várias denominações políticas acreditam que o governo deve tomar algumas ou muitas das decisões importantes na vida do indivíduo”.(1)
O que vemos normalmente é o indivíduo aceitar de forma mais ou menos passiva as decisões dos agentes políticos que, por sua vez, representam grupos específicos da sociedade ou agem segundo a pressão de grupos organizados. As pessoas, de forma geral, não parecem agir ou deixar de agir de acordo com uma posição racional que atribua ao governo a responsabilidade de tomar por elas decisões importantes. Uma parcela dos indivíduos simplesmente aceita que isso seja feito.
Por um lado, tal constatação é uma tragédia política e social, porque as consequências dessa omissão causada pela indiferença são sobejamente conhecidas, mas, por outro, permite ter uma perspectiva não tão sombria a respeito do que pode ser feito. Se a indiferença, em alguns casos, está relacionada à ignorância sobre as consequências da inação para a vida cotidiana do indivíduo, difundir ideias e informação permite tirar muitos da escuridão e, talvez, conseguir aliados.
Mas parece-me que, por outro lado, essa aceitação tácita e passiva das decisões dos agentes politicos que serão convertidas em programas de governo e legislação está ligada a uma percepção equivocada sobre o papel da autoridade, da legitimidade e do exercício do poder pelo estado. Quando essas três dimensões se fundem a sociedade não apenas deixa de assumir suas responsabilidades, direitos e deveres, como abre mão de todos eles.
Primeiro, o que é autoridade? No seu valioso livro Autoridade, o professor português Miguel Morgado se propõe a examinar o conceito e a explicar o fenômeno. Nos diz Morgado que a autoridade tem a capacidade de influenciar, pois não emite ordens nem cria leis e, por isso, não se constitui como uma ameaça. E muito embora esteja mais próxima “do aviso ou do conselho”, condiciona “a ação de quem lhe está submetido”. É, nas palavras de Mommsen citada por Morgado, “mais do que um conselho e menos do que uma ordem, mas um conselho que se torna perigoso ignorar”.(2) A aparência de ordem desse conselho advém da forma autoritativa com que são pronunciadas e está diretamente vinculada a quem o dita, seja um agente político singular ou coletivo. “O pronunciamento autoritativo aumenta ou acrescenta um sustentáculo moral e politico que a mera legalidade desconhece. Não surpreende que fosse frequentemente interpretado como vinculativo”.(3)
Morgado também tenta explicar a autoridade pela ausência de identificação desta com elementos presentes no exercício da política. Assim, “a autoridade não se identifica pura e simplesmente com o poder (embora possa levar a um aumento desse poder), nem com a coerção, e tão-pouco com a força ou com a violência (embora possa ser um fundamento da força e da coerção; o contrário, porém, não é válido, pois a força não pode fundar a autoridade). Se confundirmos a autoridade com o poder, perdemos de vista os fundamentos da ordem social, que vão muito além de puras relações de poder, de imposição da força, da ameaça da coerção. Por outro lado, a autoridade não é Direito (embora de certo modo possa ser vista como um direito), nem é legitimidade (apesar de provavelmente a autoridade democrática não poder dispensar o emparelhamento com a legitimidade). Não por acaso, houve quem dissesse, e com autoridade para o dizer, que a autoridade é uma «palavra que se furta a toda a definição estrita» (Mommsen citado em Schmitt, 1993 [1928]: 211)”.(4)
Trago ao debate a concepção de autoridade para tentar entender como esta define a relação do homem com o governo e os incentivos gerados que a sedimentam ou que a fazem ruir. Não acho que apenas o exercício do poder mediante o monopólio da violência e de outros instrumentos de coerção seja a explicação para o brasileiro, por exemplo, considerar que o governo, que o trata como subalterno ou inimigo, deva manter sob sua responsabilidade áreas tão importantes, como ensino, saúde et cetera. Porque o respeito pela autoridade exige confiança. “Quem se submete à auctoritas deixa-se condicionar pelo prestígio da pessoa portadora dessa auctoritas. Numa palavra, respeita-a”, escreve Morgado. “O reconhecimento de quem lhe está sujeito é o reconhecimento da sua competência, honestidade, sabedoria, prudência, previdência. Quem reconhece, deposita confiança na autoridade. Fá-lo porque provavelmente tem mais confiança no detentor de autoridade do que em si mesmo”.
Interessante. Não creio que o brasileiro médio veja o governo de forma tão bondosa, mas acaba por identificar essas qualidades não na instituição política, mas no agente político. Este será mais ou menos bem-sucedido de acordo com o carisma e as promessas feitas segundo as contingências e necessidades do momento. E tal retórica é quase sempre alicerçada na transferência de responsabilidade do indivíduo para o político.
A transformação cultural provocada por esse tipo de exercício da política resulta na submissão ao poder estatal de princípios e valores que sustentam a ação individual. Ao longo do tempo, já nem é mais necessário justificar a existência ou a função do governo, mas restringir a discussão à eficiência da administração pública para melhor prover serviços e, com isso, respeitar a população. Dessa forma, o agente político assume para si a autoridade ausente no governo e ajuda a manter o statu quo baseado na desresponsabilização individual e na existência de homens que têm mais confiança no detentor de autoridade do que em si mesmos.
Investigar a fragilidade, ou inexistência, da autoridade do governo e a relação do brasileiro com as instituições formais e com os agentes políticos certamente permitirá aos liberais não só compreender porque uma parcela numerosa da sociedade acredita “que o governo deve tomar algumas ou muitas das decisões importantes na vida do indivíduo”, mas encontrar os instrumentos mais adequados para difundir a mensagem oposta, ou seja, de promoção da responsabilidade individual.
1- David Boaz. O Manifesto Libertário. São Paulo: Peixoto Neto, 2012, p. 261.
2- Miguel Morgado. Autoridade. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012, p. 53.
3- Ibid., 53.
4- Ibid., 51-52.
Sobre o Autor
Bruno Garschagen é colunista do OrdemLivre.org, podcaster do Instituto Mises Brasil e especialista do Instituto Millenium.

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