A coalização dos indignados
Gaudêncio Torquato - Blog do Ricardo Noblat
A burocracia do ar
condicionado é refratária ao calor das ruas, vielas e becos. Por isso
mesmo, fechados na redoma de estatísticas frias, em grande parte
pinçadas de complexas operações e cruzamentos de dados que passam ao
largo das feiras livres, os burocratas costumam desenhar cenários de um
país diferente daquele em que vivem seus habitantes.
São também
afamados pela “contabilidade criativa”, que usam com frequência para
puxar para baixo as contas que batem no bolso do consumidor,
principalmente em ciclo de disputa eleitoral. Pouco adiantará mostrar
para eles que o preço do tomate já subiu 31,72% este ano, que a batata
inglesa aumentou 17,27% ou que os serviços tiveram alta de 9%.
A
inflação das ruas não conta para o burocrata. Sua visão é esdrúxula:
“tomate e chuchu não são produtos insubstituíveis; ninguém come morango o
tempo inteiro; e não é o índice de feirinhas e botecos que guia a
política monetária”. A aritmética das massas não entra nas quilométricas
planilhas dos senhores dos cálculos.
E assim, longe dos gritos de
feirantes e da reclamação das donas de casa, a insensibilidade da
burocracia econômica arruma a “cama” dos gestores públicos, sob o risco
de provocar torcicolo em candidatos. São bons em promessas, como a de
que a inflação, este ano, se manterá na meta de 4,5%, com dois pontos
para mais ou para menos. A par do “pouco caso” dado ao fator que impacta
o bolso do consumidor, outros ensaios de insatisfação começam a se
espalhar pelo território.
Convém lembrar que período de eleições é
o mais propício às manifestações populares, sejam as que dizem respeito
ao bolso do contribuinte, sejam aquelas voltadas para a defesa de
interesses de grupos e corporações.
Este ano eleitoral possui,
portanto, uma identidade peculiar, ainda mais por abrigar a Copa do
Mundo, o maior evento esportivo mundial, cujo reflexo sobre o processo
eleitoral ainda é uma incógnita. Mas, nesse momento, já é possível
enxergar um alto grau de tensão a energizar setores e grupamentos, que
pode originar ondas concêntricas de insatisfação social.
É
bastante previsível a hipótese que aponta para a existência de bolsões
represados aguardando o momento para despejar sua indignação.
Veja-se
essa paralisação dos policiais federais. Trata-se de um movimento
inusitado que agita um braço investigativo do Poder Executivo, cuja
forte atuação nos escândalos mais impactantes da ontemporaneidade o
posiciona como um dos atores fundamentais no combate à corrupção.
Os
quadros se ressentem de precárias condições de trabalho, salários
defasados, “ingerências políticas nas investigações” e repasse de
atribuições constitucionais da PF a outros órgãos.
Quem imaginaria
um movimento paredista envolvendo policiais federais? O que pode
ocorrer se esses quadros cruzarem os braços em momentos críticos como os
que o país viverá logo, logo?
O aparato policial militar em
muitos Estados desfralda também uma larga planilha de reivindicações,
centradas em salários e condições de trabalho. A insatisfação das forças
policiais se expande. Teria esse fenômeno ligação com o incremento das
ocorrências policiais no país? A desmotivação dos batalhões das ruas
seria motor da expansão da criminalidade?
Cheguemos, agora, ao
epicentro das manifestações de rua, formado por grupos com origem na
classe média C, os emergentes que escalaram os degraus de baixo da
pirâmide para chegar ao primeiro andar do meio. Nesse espaço, alinham-se
os grupos que puxam a corrente do “queremos mais”.
O pão sobre a
mesa já não lhes é suficiente. Exigem serviços públicos qualificados, a
partir dos transportes urbanos, parques de lazer, segurança, saúde e
educação. Jovens, desempregados, comerciários, biscateiros, comunidades,
torcidas fanáticas de clubes de futebol, integrantes de ONGs, e, claro,
radicais, oportunistas e baderneiros, tendem a assumir papel de
vanguarda na agitação das ruas, sob os ares catárticos da Copa e
competitivos do pleito de outubro.
Esses segmentos colarão suas
ações às demandas das periferias, que, a par de velhas demandas, correm o
risco de ver as torneiras secas por falta d’água, como é o caso de São
Paulo, onde o sistema Cantareira se aproxima dos 10% da capacidade, o
índice mais baixo de sua história.
As classes médias tradicionais
também disparam fortes sinais de descontentamento, menos por conta da
pressão da inflação das ruas e mais por se verem inundadas por uma
volumosa torrente de escândalos em série.
O longo episódio que
culminou na condenação de implicados na chamada Ação Penal 470; o
desvendamento de teias de corrupção nos intestinos da administração
pública e que batem na Petrobras, empresa-símbolo do país; a polêmica
que se estabeleceu em torno de programas polêmicos, como é o caso do
Mais Médicos; as nuvens que se formam em torno das arenas esportivas,
cujo atraso no cronograma de obras ameaça causar reação popular durante a
Copa; a repetição de mantras da velha política, com as interjeições do
passado a mostrar a perpetuação de vícios- esse é o cenário da
degradação que acolhe a gestão pública e a esfera política.
Não
por acaso, elevado índice de brasileiros – 72%, segundo o Ibope – não
tem nenhum ou quase nenhum interesse na eleição. Na pesquisa espontânea
da última rodada, 56% não marcaram intenção de voto em nenhum candidato.
Os
setores produtivos, por sua vez, se mostram igualmente insatisfeitos.
Vale lembrar que nunca se abriu tanto a caixa das desonerações
tributárias como no governo Dilma. Mesmo assim, são claras as
manifestações de desagrado com a política econômica, a traduzir
inconformismo com os rumos da economia.
Como se pode inferir, há
um Produto Nacional Bruto de Insatisfação que a burocracia brasiliense
teima em não enxergar ou não querer medir. Sem aviso prévio, grupinhos,
contingentes, categorias, setores vão formando o que se pode designar de
“coalizão dos indignados”. Ameaça a todos os candidatos.
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