domingo, 28 de fevereiro de 2010

S. ou No Se Puede Vivir Sin Amor

Uísque. Sim uísque Cutty Sark, depois foi a fase do Red Label e no final era o Jack Daniel's.
Nos primeiros dias ainda estava paralisado pelo choque: ela me deixou.
Nos primeiros dias não fazia nada, larguei tudo nesse mundo.
Nos primeiros dias bebia Cutty Sark com muito gelo. Depois era a fase do Red Label, delícia.
O Jack Daniel's veio no fim, no desespero.
A proporção do gelo no copo ia diminuindo enquanto a de uísque, essa jóia dourada, ia aumentando.
No fim, não colocava mais gelo para não atrapalhar o gosto da bebida.
No começo, chorava a partir da terceira dose. As lágrimas se misturavam com o uísque e com a saudade.
No início sempre deixava o computador ligado na esperança de um recadinho dela, dizendo: - Venha, querido, tudo não passou de um sonho ruim.
As esperanças se foram junto com as lágrimas. Não choro mais. O uísque permaneceu. Sem gelo e sem dor visível.
Dei para beber: um litro por noite. Os comprimidos para dormir vieram mais tarde.
A minha imobilidade só tinha fim para colocar mais uma dose ou para bater as cinzas em qualquer recipiente que fazia as vezes de cinzeiro, que transbordava de restos de cigarrilhas e lembranças.
Conheci S. fazia dois anos. Entrou na minha vida por acaso, pedindo uma lista de livros, uma biografia do "Che", algo para ela ler. Mandou uma letra do Pink Floyd, Eclipse, e eu respondi com uma letra do The Doors, The End. A sua luminosidade entrou por uma fresta que eu inadvertidamente deixei entrever.
Conectados de alguma maneira, ríamos um do outro. Não percebi a diferença de idade: eu 45 e ela 28. Nada disso importava. Estava muito feliz com essa amizade.
Numa segunda-feira, ela se declarou apaixonada por mim.
Eu tinha que falar numa palestra de filosofia sobre Platão.
A partir desse instante vivi para ela. Vendi propriedades, comprei propriedades, trabalhei como um louco, fiz dinheiro.
A levaria para morar comigo na Toscana. Pensei, sozinho, até na possibilidade de ser pai.
Tolice.
De repente, ou aos pouquinhos, não me lembro mais, ela se afastou.
nâo respondia mais os meus recadinhos, não atendia mais o telefone.
No final, eu fiquei envergonhado.
Lógico que ela não gostava de mim. Só eu que não vi.
Não passei de uma distração entre a composição e a estação.
No CD player passei a ser parceiro de Tom Waits e Billie Holiday.
E comecei a beber.
No se puede vivir sin amor. Essa frase ficou na minha cabeça. Não sei de um filme, ou letra de uma música ou então poema.
O dia que a campainha tocou, eu disse: - Hoje não.
Ou talvez não tenha dito nada, não lembro.
Pouco me interessa também.
Aos poucos fui deixando este mundo. Telefone, tv e computador desligados.
O médico vizinho, me deu mais quatro meses de vida.
Essa vida.
Tom Waits diz repetivamente: - The piano has been drinking (not me).
Sobre mesinha de centro, coloquei a minha magnun .44,carreguei com os seis projeteis. Acharei o fundo desse poço sem fundo.
Não tenho tempo para justificativas vãs, nem orações sem sentido. Vou de encontro ao fogo que me espera.
Com uma única verdade em mãos: "sí, nadie puede mismo vivir sem amor." Tomou o último gole que restava naquele copo, respirou fundo, apontou a arma contra si próprio, apertou o gatilho e encontrou a paz que desejava.
"Procuramos a morte na ponta de uma vela.
Estamos dependurados de ponta cabeça à beira do abismo,
estamos à procura de algo que já nos encontrou."
S. nunca foi identificada pela polícia. Os investigadores relataram que S. nunca existiu, não passando de um delírio do escritor.
Quanto àquela mulher vestida de preto, segurando as mãos de uma criança de sexo masculino, não foi encontrada. Mas nos depoimentos prestados por vários amigos do falecido ela é citada.
Sobretudo, pela sua risada cativante que ecoava nos ambientes que os dois frequentavam.
O laudo da perícia afirma que a arma disparou acidentalmente enquanto o escritor a limpava, às 04h:30min (isso se a estimativa da hora do acontecido estiver correta).