domingo, 1 de julho de 2012

EUROPA: ALÉM DO FRACASSO ECONÔMICO, A HUMLHAÇÃO

Resgate de países como Grécia potencializa sentimento de humilhação de seus cidadãos
José María Ridao - El Pais
O empobrecimento súbito de economias europeias frágeis, como é o caso da Grécia, ameaça criar um clima na região similar ao da década de 30
O jornalista do "The Guardian" fez a pergunta recordando que, na Grécia, as mães não têm acesso às parteiras nem os doentes aos remédios, e a diretor geral do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, respondeu dando como exemplo a Nigéria. Falou das crianças da escola modesta de uma aldeia que recebem duas horas diárias de aula, compartilham as carteiras entre três alunos e, apesar disso, são conscientes da importância de ir para a escola. "Estas crianças não saem da minha cabeça", confessou Lagarde, esforçando-se apenas em dissimular o sarcasmo, "porque precisam de mais ajuda que as pessoas em Atenas".
Os motivos pelos quais Lagarde respondeu com palavras tão ácidas aparecem pouco depois na entrevista, e obedecem a uma lógica que deveria ser levada em consideração se tivesse sido expressada de outro modo. Lagarde se mostrava preocupada com as dimensões da fraude fiscal na Grécia, insistindo que os gregos deveriam assumir a necessidade de pagar corretamente os impostos. Por outro lado, reconhecia que o Fundo não deve impor condições mais suaves aos países ricos que aos pobres para conceder ajuda.
As reações às declarações de Lagarde não demoraram, e praticamente todas disseram que havia sido um erro. Ninguém, entretanto, ofereceu argumentos precisos do porquê era um erro. A esquerda francesa se limitou a recordar que o estatuto do Fundo exime seus funcionários de pagar impostos a partir de certo nível, inclusive a diretora geral. Mas o caráter pessoal desta crítica contribuía para abafar outra com um fundo político mais relevante: o sarcasmo de Lagarde jogava sal na ferida que os gregos queriam fazer constar nas eleições de 6 de maio, votando nos partidos contrários ao plano de austeridade exigido pela troika (composta pela Comissão, o Banco Central Europeu e o próprio Fundo).
Uma coisa era que, incapaz de financiar-se por si mesmo nos mercados de capitais, o Estado grego se vira obrigado a compactuar com um drástico plano de austeridade que o afundou na miséria; outra que, além disso, humilhou o país e a todos seus cidadãos acusando-os de fraude e corrupção como fez Lagarde.
A reação dos gregos nas eleições de maio trouxe à tona o fato de que a intervenção é mais do que um simples mecanismo financeiro nas mãos da União; é também um estigma moral, uma letra escarlate, como no romance de Nathaniel Hawthorne, as economias europeias mais fortes podem impor às mais fracas a expiação de seus pecados. Durante os anos em que a Grécia sofre intervenção, os dados econômicos só pioraram. A seguridade social está arruinada, até o ponto em que, de fato, as mães não têm acesso a parteiras e os doentes não têm remédios. Mas, além disso, o desemprego alcançou 22% da população ativa e 50% dos jovens.
Nem sequer a consolidação fiscal, o objetivo que a Alemanha de Merkel declarou tão arrebatadoramente urgente e irrenunciável – primeiro com o apoio de Sarkozy, e agora praticamente sozinha – parece estar mais certa. O que a Grécia corta em gastos sociais ou em salários de funcionários, deve usar para financiar a dívida, alimentando o mesmo círculo vicioso, exatamente o mesmo, que a obrigou a solicitar ajuda europeia. Com um efeito colateral cujas consequências serão sentidas por muitos anos: a estrutura do gasto público ultrapassa a condição de injusta e pouco distributiva para se transformar diretamente em aberrante, porque compromete por uma ou várias gerações o futuro da Grécia sem resolver seus problemas presentes.
As razões pelas quais Sarkozy apoiou uma política de austeridade até a morte como a que se segue na Grécia carecem de sentido desde o momento em que seu sucessor no Eliseu, François Hollande, encabeça dentro da União os tímidos movimentos para encontrar uma alternativa. Mas as razões pelas quais a Alemanha o faz continuam dando lugar à especulação. Não porque Angela Merkel ou o diretor do Bundesbank, Jens Weidmann, não as reiterem com clareza tanto em declarações à imprensa como nas reuniões comunitárias ou internacionais das quais participam.
"O governo alemão desconfia que os países da eurozona em dificuldades façam ou precisam fazer se não sentirem a corda no pescoço", afirma Maurici lucena, economista e ex-alto funcionário do governo socialista na Espanha. "Talvez tenha razão, mas é uma estratégia perigosa". O perigo está no que poderia provocar a ruptura do euro apesar do resultado das eleições gregas, nas quais a única coisa que ficou clara é que o novo governo respeitará o plano de ajuste, mas não que o plano vá dar melhores resultados do que até agora. "O paradigma econômico mudou", conclui Lucena. "Os europeus fazemos parte de uma união monetária, e a sensação de humilhação que a intervenção provoca vem do fato de que não estamos conscientes da nova situação."
Se a intervenção implica humilhação, se se transformou na letra escarlate que as economias mais fracas da eurozona podem se ver obrigadas a suportar, é porque foi se confundindo com a ameaça, com a corda no pescoço de que fala Lucena, para conjurar a desconfiança da Alemanha em relação a alguns membros da União. Esta desconfiança, por si só, não é precisamente um gesto amistoso entre sócios que aspiram a integração política e sonharam em algumas ocasiões com uma Europa federal.
Mas traduzida em uma alternativa definitiva entre a política de austeridade até a morte ou a cessão da gestão econômica à troika abandona o terreno dos gestos e entra no da ação, além disso empreendida em aberta contradição com os procedimentos seguidos pela construção europeia desde seu início. A união monetária, que era o principal sucesso desses procedimentos, desses mecanismos inovadores de decisão arduamente tecidos nos tratados para formar a vontade política comum dos 27, transformou-se numa ratoeira na qual o critério dos mais fortes se impõe de fato sobre os mais fracos.
"A intervenção implica uma desvalorização interna", afirma Jorge Fabra, promotor do Economistas Frente à Crise, uma associação que, seguindo o exemplo de um movimento semelhante surgido na França antes das últimas eleições presidenciais, pretende combater a política de austeridade até a morte imposta pela Alemanha. Para Fabra e os Economistas Frente à Crise, existe alternativas de política econômica que não se consideram porque, na verdade, a União é hoje o cenário de uma luta entre quem quer aprofundar o modelo de convivência social que o Estado de bem-estar social europeu representa e quem propõe desmantelá-lo, ou pelo menos reduzi-lo.
Desvalorização interna, segundo Fabra, significa "privatizar serviços públicos e cortar os gastos sociais", coincidindo com uma conjuntura que os tornam mais necessários do que nunca. A humilhação que enfrentam os países forçados a escolher entre a política de austeridade até a morte e a intervenção procede de que ambas as opções vêm impostas de fora e comprometem por igual a todas as forças políticas tradicionais, privando de valor as preferências que os cidadãos expressam nas urnas. O europeísmo da social-democracia se volta contra si mesmo, e os conservadores, por sua vez, veem-se transbordados pelos partidos populistas e de extrema direita.
Na década de 30 do século passado, as desvalorizações competitivas buscavam deliberadamente provocar a ruína do vizinho em benefício próprio. Não se pode dizer que este seja o objetivo da política de austeridade até a morte imposta sob a ameaça da intervenção. Mas, sim, a consequência inevitável das diferenças abismais que suportam os Estados da eurozona para financiar sua dívida, sujeitados a aplicar esta única política.
Merkel alega em seu favor que há uma década, quando a maior parte dos países da eurozona se entregou à festa que criou a bolha financeira, os alemães assumiram a política de austeridade que agora pedem ao resto dos parceiros e que acabaram dando os resultados que estão à vista. Ninguém duvida da autoridade moral que os governos alemães ganharam para se fazerem escutar na gestão da crise, mas cabe se perguntar se não estarão perdendo-a ao manter a moeda única à beira do abismo e consentir o empobrecimento súbito das economias mais frágeis da eurozona.
Primeiro, porque, de acordo com a expressão de Fabra que ilustra a mesma preocupação de Lucena, "pode-se produzir acidentes", já que não é a mesma coisa perseguir a consolidação fiscal no contexto econômico da época e no de agora, nem é indiferente o ritmo que se quer imprimir a ela. Segundo, porque a política de austeridade até a morte está desencadeando processos econômicos e políticos nos países com dificuldades para financiar sua dívida, dos quais a Alemanha não pode ignorar. Nem pelo interesse da Europa, nem por seu próprio.
"A política de reduzir a Alemanha à servidão durante uma geração, de aviltar a vida de milhões de seres humanos e de privar toda uma nação de felicidade", escreveu Keynes em 1919, "seria odiosa e detestável, embora seja possível, ainda que fosse possível, ainda que nos enriquecesse, ainda que não semeasse a decadência de toda a vida civilizada da Europa". Apesar das advertências, as potências vencedoras da Primeira Guerra Mundial optaram por seguir reclamando à Alemanha as reparações contempladas na literalidade do Tratado de Versalhes, deixando a seus governos sem margem para adotar outra política econômica que a que lhes era imposta de fora.
O sentimento de humilhação que se apoderou dos alemães não é diferente do que está começando a se forjar agora entre alguns europeus, por mais que as situações de partida não sejam comparáveis, e o papel de algumas potências tenha invertido. A Grécia é um país pequeno, não uma potência mundial como a que era a Alemanha, e se dá por certo que as consequências políticas desencadeadas pelas decisões econômicas para combater a crise não podem representar uma ameaça. Mas depois da Grécia, caíram a Irlanda e Portugal, e pode ser que num prazo breve a Espanha os siga e quem sabe a Itália, confirmando que a política de austeridade até a morte não dá resultados ou não o faz à velocidade necessária. Nem sequer para conjurar a ameaça da intervenção.
Em "A Letra Escarlate", de Nathaniel Hawthorne, Hester Prynne é condenada por um tribunal público a levar sobre as roupas uma marca que recorda seu pecado durante a vida inteira. Só que o homem com quem ela foi infiel a seu marido era Dimmensdale, um reverendo de conduta até então exemplar que se manteve silencioso e indiferente ao sofrimento de Hester Prynne enquanto esta tentava sobreviver estigmatizada na sociedade puritana da Inglaterra do século 17. Dimmendale se acreditou a salvo do escândalo, mas ao passar o tempo, a mesma marca que Hester teve que levar sobre suas roupas, a mesma letra escarlate que arruinou sua vida por haver pecado, começou a se desenhar sobre a pele do reverendo.
Tradutor: Eloise De Vylder

Nenhum comentário: