A história que a China conta
A verdade histórica parece nítida: encerrou-se o ciclo da 'globalização chinesa'. É tempo de aposentar a lenda
Demétrio Magnoli - FSP
7% ou 3%? Depois da queda abrupta do mercado acionário, o governo chinês
garante que o PIB da segunda maior economia do mundo ainda crescerá 7%,
em linha com a hipótese de "aterrissagem suave". Os céticos, cada vez
mais numerosos, ignoram os desacreditados índices oficiais, apontando a
anemia de indicadores físicos, como o consumo de eletricidade e o
movimento ferroviário de carga, que sinalizariam expansão anual de
apenas 3%, numa "aterrissagem forçada". A verdade estatística está,
provavelmente, no meio termo. Já a verdade histórica parece nítida:
encerrou-se o ciclo da "globalização chinesa". É tempo de aposentar uma
lenda.
A lenda diz que o sucesso da China derivou de um modelo assentado na
centralização de decisões, no dirigismo estatal, no gerenciamento
econômico heterodoxo e no financiamento subsidiado da projeção externa
das empresas do país. Difundida no Brasil pelos arautos do capitalismo
de Estado e do neonacionalismo, ela é menos uma análise da inserção
chinesa na economia mundial que uma plataforma de combate ideológico.
Suas mensagens: a) o "modelo chinês" serviria como fonte de inspiração
para o Brasil reformar-se a si mesmo; b) a cooperação estratégica da
China com os "países emergentes" contrabalançaria a polaridade
geopolítica exercida pelos EUA e pela União Europeia. Tudo isso tinha
uma película de verossimilhança na hora do crash financeiro global de
2008-2010, mas não resiste à prova da "aterrissagem" chinesa.
O "modelo chinês" nunca foi um "modelo", mas unicamente a forma assumida
pela economia da China na etapa inicial de sua transição do socialismo
para o capitalismo. Nessa etapa, o dirigismo estatal propiciou o
crescimento econômico acelerado porque o país dispunha de reservas
abundantes de força de trabalho barata e os mercados externos eram
capazes de absorver, na forma de importações, a poupança compulsória da
população chinesa. Mas tais condições desapareceram. A China em
"aterrissagem" só pode prosseguir seu desenvolvimento pela ativação do
mercado interno –o que exige a desmontagem das engrenagens do
capitalismo de Estado.
A passagem de uma economia de investimento para uma economia de mercado
solicita reformas radicais, que se estendem do direito de propriedade
aos direitos civis e políticos, passando por regras capazes de assegurar
a concorrência. Os dirigentes chineses resistem às reformas mais
profundas, que provocariam fissuras insanáveis no sistema político
totalitário. Mesmo eles, porém, reconhecem oficialmente o imperativo de
liberar as forças de mercado da teia asfixiante de controles estatais. O
capitalismo de Estado não é o futuro, mas o passado, da China –eis uma
conclusão inevitável que escapa aos ideólogos brasileiros do "modelo
chinês".
A tese da "aliança estratégica" antiamericana nunca passou de uma
bizarra utopia. O grupo dos Brics, celebrado pelo governo brasileiro
como polo geopolítico alternativo, reúne países com interesses
fundamentais distintos. Índia e China são potências nucleares rivais.
China e EUA são parceiros estratégicos no universo das finanças globais.
O Banco dos Brics, exibido no Brasil como instrumento de revolução da
ordem financeira global, é um elemento periférico no esforço de
internacionalização da economia chinesa.
A "aterrissagem" da China, suave ou forçada, evidencia a dimensão da
fraude analítica. Os "países emergentes" cresceram à sombra da
"globalização chinesa", empurrados pelo vento de cauda da explosão das
cotações das commodities e por fluxos inéditos de investimentos
estrangeiros. Hoje, todos eles sofrem, em graus diferentes, os impactos
da reversão do ciclo econômico –e, enquanto a China desacelera, os
capitais escorrem na direção dos EUA. "Modelo chinês"? O admirável mundo
novo cantado pelo lulopetismo era só uma metamorfose do mundo velho.
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