domingo, 20 de setembro de 2015

'Queremos um massacre': cresce tensão entre turcos e curdos às vésperas de eleição
Hasnain Kazim - Der Spiegel
13.set.2015 - Sertac Kayar/Reuters
Ataques ligados ao PKK em Diyarbakir, cidade curda na Turquia, mataram 3 policiaisAtaques ligados ao PKK em Diyarbakir, cidade curda na Turquia, mataram 3 policiais
Cemile só queria um pouco de ar fresco e escapar da sensação de confinamento que o toque de recolher em Cizre tinha trazido. Era pouco depois das 20h de 4 de setembro. A escuridão tinha caído sobre a cidade no sudeste da Turquia. À distância, Cemile podia ver o fogo nas montanhas. Os soldados estavam queimando as florestas para destruir os esconderijos dos combatentes curdos. "Mas não saia na rua!", gritou seu pai, Ramazan Cagirga.
Lá fora, como é comum hoje em dia, podiam-se ouvir tiros. De repente, ouviu-se um ruído forte na vizinhança. Cemile --de 12 anos de idade, cabelos longos, olhos castanhos, brincos de pérola-- caiu ali mesmo. A bala tinha atravessado o portão de madeira e o jardim da frente e matado a menina. Testemunhas disseram que o fogo veio de um veículo blindado.
"Tínhamos esperança de que Cemile sobrevivesse", disse o pai. "Nós a levamos para dentro da casa, mas não havia nada que pudéssemos fazer". Em seguida, ele tentou chamar uma ambulância para pegar o corpo. Mas ninguém veio por causa dos tiros e do toque de recolher.
Durante o dia, as temperaturas chegaram a mais de 40ºC. Então, eles esvaziaram o freezer, enrolaram o corpo em papel filme e congelaram-no. O corpo da menina passou três dias lá até que um carro finalmente chegou para levá-la ao hospital da cidade vizinha de Sirnak. A família de Cemile enterrou seu corpo na sexta-feira.
A família já tinha perdido parentes em um ataque das forças de segurança turcas uma vez. Em 1992, o avô, a irmã, tios e tias de Ramazan Cagirga morreram --sete pessoas, no total. A casa --a mesma onde Cemile morreu este mês-- tinha sido alvo de tiros.

Volta da violência

Não são apenas as mortes na casa de Cagirgas que parecem estar se repetindo. Entre 1984 e 2013, 40 mil pessoas, na sua maioria curdas, morreram na sangrenta guerra civil da Turquia. Agora, a tensão está aumentando de ambos os lados, mais uma vez, com ataques do PKK (Partido dos Trabalhadores turco), do exército turco, além da declaração de estado de emergência, restrições sobre a cobertura noticiosa e um clima geral de medo e violência.
Existem dois motivos para a atual escalada do conflito. O primeiro é o fato de o AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), do presidente Recep Tayyip Erdogan, ter perdido a maioria absoluta nas eleições parlamentares recentes. Então, em 20 de julho, um homem-bomba provocou uma explosão em Suruc, perto da fronteira síria. O atentado, atribuído ao EI (Estado Islâmico), matou 32 pessoas, na maioria jovens ativistas pró-curdos.
Pouco tempo depois, membros do banido PKK mataram dois policiais em Ceylanpinar, 200 quilômetros a leste, em "retaliação pelo massacre em Suruc". Dois dias depois, aviões de combate turcos começaram a realizar ataques aéreos, oficialmente contra "todos os terroristas que são nossos inimigos", como colocou o governo. No fim, a força aérea fez algumas incursões contra o Estado Islâmico no norte da Síria --mas atacou muito mais as posições do PKK no norte do Iraque.
Desde então, a guerra entre o Estado turco e o PKK inflamou novamente, e nada resta do processo de paz que vigorou durante os últimos dois anos. Mais de 100 soldados e policiais foram mortos em ataques; o PKK descreveu os assassinatos, resultantes de bombas detonadas remotamente, como "autodefesa". E, ao mesmo tempo, de acordo com Erdogan, dois mil combatentes do PKK já foram mortos pelas forças de segurança turcas, além de inúmeros civis. A situação está tão tensa que as vozes conciliadoras estão sendo ignoradas. Aqueles que começaram a violência não têm atuado na situação há algum tempo --e agora não há muito além de provocações e recriminações de ambos os lados.
Na semana passada, Erdogan declarou que "nada disso" estaria acontecendo se uma das partes --ou seja, ele quis dizer o AKP-- tivesse 400 representantes no parlamento. Isso lhe daria a maioria de dois terços necessária para alterar a Constituição e introduzir um sistema presidencialista que concentraria ainda mais poder em torno de Erdogan.

"Nós vamos expulsá-los"

O jornal diário "Hürriyet" criticou a declaração de Erdogan, levando os apoiadores do AKP a marcharem, com paus e pedras em mãos, até a redação do jornal em Istambul durante dois dias consecutivos. Em uma ocasião, um legislador do AKP liderou os manifestantes, acusando o jornal de ser "o mesmo que o PKK". Depois de 1º de novembro, "vamos expulsar todos eles", disse.
Como o governo do AKP, que está no poder há mais de uma década, não conseguiu construir uma coalizão depois das eleições de 7 de junho, novas eleições estão programados para 1º de novembro. O fracasso destruiu os sonhos de Erdogan para o sistema presidencialista. O motivo da derrota de Erdogan foi principalmente o HDP, que, como primeiro partido pró-curdo, conseguiu passar a barreira dos 10% e entrar no parlamento turco. Líderes políticos do AKP responsabilizaram o partido pela perda da sua maioria parlamentar.
Críticos argumentam que Erdogan lançou conscientemente o país no caos para se retratar como um líder forte. Ele está arriscando uma guerra civil, eles dizem, a fim de ganhar as eleições em 1º de novembro. E alguns, especialmente os curdos, acreditam que ele também quer se vingar do HDP. "O AKP permitiu propositalmente que as negociações de coalizão fracassassem e quer criminalizar o HDP, chamando-nos de terroristas, processando membros e empurrando-nos para perto do PKK", diz um dos líderes do partido, Selahattin Demirtas. "O AKP está provocando uma guerra civil para se vingar por ter perdido a maioria."
Em 8 de setembro, ultranacionalistas invadiram escritórios do HDP em todo o país e atearam fogo às instalações. Em Ancara, um funcionário do HDP twittou: "nossa sede está sendo atacado. A polícia não está fazendo seu trabalho." Em Istambul, jovens anti-curdos marcharam pelas ruas com tochas gritando: "não queremos uma operação militar, queremos um massacre".
No dia seguinte, em centenas de lugares, carros buzinaram agitando bandeiras turcas pelas ruas e celebraram a violência. Em muitos lugares, os curdos preferiram deixar seus negócios fechados. As cenas lembraram a noite de massacre em setembro de 1955, quando a minoria grega de Istambul foi expulsa.
Demirtas, que normalmente se esforça para ser razoável, deixou-se levar com um apelo emocional. "Quando eles chegarem para atacar sua casa, seu trabalho, seu partido ou a sede do seu partido, para linchar você e matá-lo, então você tem o direito de garantir que eles vão se arrepender de ter nascido. A autodefesa é um direito de cada ser vivo. Sem atacar pessoas inocentes e no contexto apropriado e de acordo com as leis, todos devem defender a si mesmos e às sedes de nosso partido."
Cemil Bayik, membro fundador do PKK, que até agora tinha ignorado todos os pedidos de cessar-fogo do HDP, ameaçou os nacionalistas dizendo que, "a partir de agora", eles iriam "sofrer". "Suas mães vão se arrepender de tê-los colocado no mundo", disse ele, anunciando que a luta seria expandida para a parte ocidental do país e para as cidades.

"Resultados mistos"

Essas palavras reconfirmam as crenças de muitos turcos que veem o PKK como uma força que está liderando a desestabilização da Turquia. Jornalistas próximos ao governo gostam de lembrar que o PKK não é apenas rotulado como uma organização terrorista pela Turquia, mas também pela União Europeia e pelos Estados Unidos. Os políticos ocidentais e os meios de comunicação, eles argumentam, têm uma tendência a "romantizá-los" porque os curdos estão lutando contra o Estado Islâmico.
Mas mesmo que Erdogan e o PKK estivessem planejando isso, a escalada do conflito até agora não impulsionou nenhum dos dois. Pesquisas atuais mostram o AKP com 41% dos votos, um número que reflete o resultado das eleições de junho. É também bastante possível que o HDP volte a entrar no parlamento.
Embora muitos apoiadores tenham se afastado, como resultado da violência do PKK, o partido está, ao mesmo tempo, ganhando eleitores à medida que um número crescente de turcos assumem uma postura crítica em relação ao presidente e suas ações. A cada soldado ou policial morto, a raiva cresce, não só contra o PKK, mas também contra Erdogan, que está sendo acusado até mesmo pelos nacionalistas de sacrificar vidas humanas em prol de seu sucesso.
A matança continua, especialmente em Cizre e em outros lugares de maioria curda no sudeste. E ela não deve terminar tão cedo. Vários municípios romperam com a Turquia e declararam autonomia. Lá, jovens curdos com Kalashnikovs, coquetéis molotov e pedras estão dando as ordens. Trincheiras e barricadas feitas de pedras, entulho e pneus de carro são construídas para impedir os avanços das forças de segurança, que não estão mais respondendo apenas com gás lacrimogêneo, mas também com atiradores e munição de verdade.
Cizre foi efetivamente cortada do mundo exterior por mais de uma semana, ocupada por soldados e pela polícia, administrada por pessoas com armas. Um toque de recolher foi imposto durante uma semana e, em seguida, depois de uma pausa de 24 horas, por mais um dia. A internet e os telefones só funcionam de forma irregular, e as linhas são desligadas com frequência para que combatentes do PKK não possam se comunicar.
As pessoas ainda estão muito nervosas para se aventurar nas ruas por medo de serem baleadas. Às vezes, os moradores conseguem colocar fotos de novas vítimas na internet, como a de uma mãe sangrando até a morte, enquanto segurava um bebê gravemente ferido. Ou de uma senhora idosa caída na rua.
Demirtas, o político, diz que Cizre é a "Kobane da Turquia". Ele diz que as 120 mil pessoas de lá estão cercadas. Na semana passada, ele partiu em uma "marcha pela paz" para o município. As forças de segurança o pararam a alguns quilômetros de distância da cidade. Mas ele não quer desistir até chegar em Cizre, disse.
Tradutor: Eloise De Vylder 

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