domingo, 20 de setembro de 2015

Por que os terroristas atacam democracias?
Celestine Bohlen - TINYT
Raqqa Media Center via AP/Arquivo
Quando terroristas atacaram o jornal satírico francês Charlie Hebdo em janeiro passado, a visão que predominou na Europa foi a de que o alvo deles era a liberdade de expressão, "um componente essencial da nossa cultura democrática livre", como disse então a chanceler alemã Angela Merkel.
Em 11 de setembro de 2001, o presidente George W. Bush deu uma explicação semelhante sobre o motivo pelo qual os Estados Unidos tinham sido atacados. "Os EUA foram alvo de ataque porque somos o farol mais brilhante da liberdade e da oportunidade no mundo", disse ele num discurso à nação.
Democracias têm sofrido repetidos ataques terroristas ao longo dos últimos 14 anos. Houve os atentados de Madri, em 2004, o ataque ao metrô de Londres em 2005, e nos anos mais recentes, casos esporádicos por toda a Europa. Entre eles, um ataque a uma escola judaica na cidade francesa de Toulouse em 2012, assassinatos em um museu judaico em Bruxelas em 2014, um ataque frustrado contra uma igreja católica nos arredores de Paris e, mais recentemente, um tiroteio abortado em um trem de alta velocidade com destino a Paris.
Estes ataques foram atribuídos a extremistas islâmicos, mas outros atacaram suas próprias sociedades de forma mais solitária: Anders Behring Breivik, obcecado pelo ódio ao multiculturalismo, entregou-se a uma fúria assassina na Noruega em julho de 2011.
As democracias não são o único alvo de grupos terroristas. Atentados suicidas acontecem com uma regularidade fatal no Oriente Médio e outros lugares, muitas vezes em sociedades que estão muito aquém do ideal democrático, e respondem pela maioria esmagadora das vítimas recentes do terrorismo.
E ainda assim, os repetidos ataques em países ocidentais continuam levantando questões sobre os objetivos dos terroristas. As democracias são atacadas porque suas liberdades sociais e políticas são a antítese da visão de teocracia rígida dos jihadistas? Se os assassinos atacaram o Charlie Hebdo por causa de caricaturas do profeta Maomé, por que um outro terrorista, dois dias depois, atacou uma mercearia judaica?
Líderes islâmicos nunca esconderam seu desprezo pela democracia. Osama bin Laden, em uma mensagem aos iraquianos em 2003, chamou-a de uma "prática desviante e enganosa". O falecido Abu Musab al-Zarqawi, considerado o fundador do chamado Estado Islâmico, desafiou as eleições de 2005 no Iraque por razões teocráticas. "O legislador que deve ser obedecido em uma democracia é um homem, e não Deus", disse ele. "Essa é a própria essência da heresia, do politeísmo e do erro, uma vez que contradiz a base da fé e do monoteísmo."
Contudo, a maioria dos especialistas hoje argumentaria que Bin Laden atacou os Estados Unidos em 2001 por causa da presença militar do país no Oriente Médio, e não por causa de suas liberdades. "Se Bush diz que nós odiamos a liberdade, ele que explique porque nós não atacamos a Suécia, por exemplo", disse o chefe da Al Qaeda em uma transmissão de vídeo na Al Jazeera em 2004.
À medida que o terrorismo islâmico evoluiu desde os ataques de 11 de setembro de 2001, o pensamento sobre os motivos dos terroristas também mudou. A chegada recente do EI, ou Daesh em árabe, ao cenário redefiniu o debate mais uma vez, enquanto cerca de 20 mil combatentes estrangeiros – entre eles centenas vindos da Europa – juntam-se à guerra para estabelecer um califado islâmico no Oriente Médio.
O medo na França e no resto da Europa é de que os recrutas ocidentais voltem para começar uma campanha de terrorismo nos países onde cresceram, levantando novamente a questão de por que as democracias ocidentais continuam sendo alvejadas, e se elas – precisamente por causa das liberdades intrínsecas a seus sistemas – são mais vulneráveis a ataques.
Gilles Kepel, professor do Instituto de Estudos Políticos da França, argumentou que o EI, ao contrário da Al Qaeda, está fazendo um jogo mais amplo e profundo, alimentando deliberadamente as tensões "no seio da Europa com o objetivo de destruí-la, insuflando uma guerra civil entre seus cidadãos e residentes muçulmanos e não-muçulmanos".
Kepel, numa entrevista ao jornal francês "Le Monde" em janeiro passado, citou uma estratégia elaborada em 2004 pelo ideólogo sírio Abu Musab al-Suri, que convocava a atos individuais de terrorismo nas sociedades ocidentais destinados a incitar a islamofobia. Ele argumentou que este, por sua vez, alienaria mais muçulmanos locais, transformando-os em potenciais recrutas para a jihad.
O advento das mídias sociais, e a guerra total travada pelo EI no Iraque e na Síria, permitiu que esta estratégia fosse colocada em ação, de acordo com Kepel. "O mundo inteiro se tornou um campo de batalha para o Daesh", disse ele na entrevista.
"Cartunistas 'blasfemos', muçulmanos 'apóstatas', a polícia, os judeus – são todos alvos escolhidos", disse ele. "O Daesh identificou precisamente as divisões culturais, religiosas e políticas, e definiu seu objetivo de transformá-los em diferenças irreconciliáveis".
Outros estrategistas islâmicos elaboraram a teoria de uma "jihad sem líder", que não tenta organizar ações terroristas, mas inspirá-las de longe, evitando contas imensas e estruturas de comando arriscadas.
Jessica Stern, coautora com JM Berger do livro "EI: O Estado do Terror", disse que a mensagem do movimento é surpreendentemente simples. "Todos devem vir se juntar à jihad, mas se você não puder vir, então fique em seu país e ataque", disse ela. O objetivo final é a polarização e o caos – uma "narrativa apocalíptica" preferida por Zarqawi.
"A mídia social com certeza facilitou em muito o incentivo a células individuais", disse Stern, palestrante sobre terrorismo em Harvard. "É muito eficaz, porque isso dificulta que a polícia saiba o que está acontecendo."
A democracia, nesse sentido, pode ser mais o cenário do que o alvo – abrindo o debate sobre se as democracias são mais vulneráveis porque permitem mais espaço para a liberdade de expressão e maior proteção aos direitos humanos. Os especialistas observam, por exemplo, que sociedades autocráticas como a China têm experimentado menos ataques terroristas do que, digamos, a Índia.
Outros argumentam que a repressão apenas alimenta o terrorismo. "Quanto mais você luta contra qualquer expressão de dissidência sob a bandeira da "luta contra o terrorismo", mais você fomenta a mesma ameaça terrorista", escreveu recentemente Jean-Pierre Filiu, professor do Instituto de Estudos Políticos. Ele citou o caso da Argélia, onde a vitória de um partido islâmico nas urnas em 1992 foi suprimida por um golpe militar, levando a uma década de guerra contra jihadistas marginalizados que custou a vida de cerca de 150 mil argelinos, na maioria civis.
Em seu caminho para recriar um califado, os líderes do EI têm instituído elementos de um Estado funcional em lugares como Raqqa, na Síria.
Mas o governo do EI é imposto pelo medo, e não pelo livre consentimento. "Se você acredita que o caminho certo para regular a sociedade deve ser determinado pela palavra de um profeta do século 7, isso exclui colocar a questão em votação", disse Patrick Cockburn, jornalista irlandês e autor de "A Ascensão do Estado Islâmico: o EI e a Nova Revolução Sunita."
As vitórias militares do EI contra o Exército iraquiano e contra os ataques aéreos agressivos liderados pelos EUA transformaram-no em algo que a Al Qaeda nunca foi: uma causa vencedora. Um autor anônimo, identificado como ex-oficial num país da Otan, com ampla experiência no Oriente Médio, escreveu recentemente no The New York Review of Books que a grande conquista do movimento foi criar um monopólio sobre a jihad, atraindo combatentes do mundo inteiro.
"A única mudança foi que de repente havia um território disponível para atraí-los e abrigá-los", escreveu o autor. "Se o movimento não tivesse tomado Raqqa e Mosul, muitos deles poderiam ter muito bem ter continuado vivendo suas vidas com diferentes graus de tensão – como produtores de leite na Normandia ou funcionários da prefeitura em Cardiff."
"Somos deixados novamente com uma tautologia: o EI existe porque ele pode existir", escreveu o autor. "Eles estão lá porque estão lá."
Tradução: Eloise De Vylder                                                              

Memorial homenageia vítimas do voo 93 do 11 de Setembro
Gordon Felt, presidente da associação de famílias do voo 93, visita exposição de fotos, que inclui algumas de seu irmão Edward, no memorial nacional em Shanksville, na Pensilvânia (EUA). O voo 93 da United Airlines foi um dos voos desviados de seus trajetos originais no dia 11 de setembro de 2001, quando a Al Qaeda realizou ataques terroristas contra os EUA. O avião caiu próximo a região de Shanksville, 81 minutos após decolar do Aeroporto Internacional de Newark. O Memorial Nacional Voo 93, que custou US$ 26 milhões, é inaugurado 14 anos depois dos atentados Nicole Bengiveno/The New York Times

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