quinta-feira, 25 de maio de 2017

Esplanada dos ministérios: um novo junho de 2013?
Os protestos violentos contra o governo Temer prenunciam um desfecho que o Brasil já conhece desde junho de 2013. Quais as diferenças agora?
Flavio Morgenstern - Senso Incomum
A invasão da Câmara e de ao menos 4 ministérios na Embaixada dos Ministérios em Brasília hoje por grupelhos praticando vandalismo o mais violento e se cobrindo com máscaras lembrou outro momento do Brasil com o mesmo cenário: junho de 2013. As situações são análogas?
Em meu livro, Por Trás da Máscara. Do Passe Livre aos Black Blocs, as Manifestações que Tomaram as Ruas do Brasil, analiso não apenas aquele momento do Brasil, mas o que é de fato a política de massa: diferentemente da política tradicional, que atua por instituições (sejam de representação da população ou de um poder superior), a política de massa significa a massa humana, viva e fervilhante, tomando ruas e as instituições “ultrapassadas” para demandar algo à força da maioria.
Não significa, portanto, qualquer manifestação com ruas apinhadas de gente, algo tão comum em qualquer política institucional normal: a política de massa é um fenômeno completamente moderno e urbano, em que as massas, incônscias do que fazem, saem à grita por “direitos” ou contra algum grande inimigo, demandando uma solução imediata dos políticos que, via de regra, só pode ser atingida pela revolução – a aniquilação total da ordem social, em prol de uma nova, onde as massas têm o que desejam imediatamente, pela via política, e não pela produção.
A Revolução Francesa define a modernidade e foi o primeiro grande movimento de massa de alcance nacional. A Revolução Russa, as marchas de Hitler, a Revolução Iraniana, o Occupy Wall Street, os Indignados, as rodadas de Seattle, os protestos no Chile, boa parte da Primavera Árabe: são movimentos de massa que funcionam de maneira bastante distinta da política tradicional.
No Brasil, em junho de 2013 – e esta é a tese nuclear de meu livro – tivemos a primeira demonstração de um movimento de massa de grande porte no Brasil. Apesar de junho de 2013 ser lembrado pela violência e pelos black blocs, o que estava em jogo não era definido exatamente pela violência – fenômeno local, que apesar de custoso, não afetou tanto a política. De fato, foi a violência que espantou as pessoas das ruas, e o movimento de massa, esvaziado, perdeu seu poder revolucionário.
De certa forma, portanto, os black blocs evitaram que a manifestação de junho de 2013 tivesse um final ainda mais trágico para a história do país, com um povo inteiro sem consciência do que fazia, por que fazia, o que demandava, a mando de quem, quem sairia ganhando e quem sairia perdendo. Bastava um líder. A violência, mal calculada (e impossível de ser controlada depois da primeira fagulha de pólvora), acabou impedindo que lideranças florescem nas ruas.
Movimentos de massa surgem por uma causa indiferente qualquer, símbolo de uma grande injustiça. Pode ser o preço do pão na Revolução Francesa, as propinas para cobradores de impostos na Primavera Árabe, o preço da passagem de ônibus em junho de 2013. Clama-se por uma “sensibilização” um tanto artificial dos políticos, que só logrará êxito com o peso das ruas.
A seguir, vem a formação de lideranças. Com o poder de forçar mudanças, vem a necessidade de tomar o poder oficial para concretizá-las. Para se realizar o que o povo julga “bom”, o poder necessário deve ser incrivelmente maior do que o poder anterior: é preciso ter o poder de vencer, julgar e substituir os antigos poderosos, e ainda por cima realizar ao menos parte do prometido. Por conta dessa matemática básica, toda Revolução termina com uma violência e injustiça indescritivelmente maior do que aquela que julgava combater, de Stalin a Hitler, de Mao a Khomeini.
Em junho de 2013, a revolução estudada há anos por entidades como Fora do Eixo, Mídia Ninja e uma série de revoltados raramente chegados aos 30 anos, aboletados em secretarias da cultura, redações de revistas teenagers (Trip, piauí, Cult, Rolling Stone etc), conseguiu apenas executar um primeiro movimento: determinar qual tema era de interesse vital para o país para que ele mobilizasse integralmente, o que não havia dado certo com a Marcha da Maconha, a Parada Gay ou outros temas de importância segmentada na sociedade. Perceberam, desde as greves de ônibus, o “churrascão da gente diferenciada” e as paralisações em São Paulo, Florianópolis e Salvador, que transportes era realmente a causa motriz para protestos que unissem toda a população.
Entretanto, despreparados e incultos, não faziam idéia do que fazer na fase seguinte: a criação de lideranças. Com a pauta da passagem sendo aceita, ainda por cima, o movimento logo esvaziou. Havia força, sem haver o que fazer com ela, a não ser aplicar força bruta e slogans genéricos e indeterminados, como “a corrupção” ou “os políticos”. Algo como tentar fazer um abaixo-assinado contra a morte de um cantor pop.
Já em 2017, as circunstâncias são distintas para tentar se aplicar o mesmo script.
Em primeiro lugar e mais importante, o grosso da população não sabia quem eram as forças políticas comandando junho de 2013 (o PSOL aparecia camuflado sob a bandeira de seu coletivo “Juntos!”, que usa a cor amarela, o PCdoB se disfarçava de roxo sob a bandeira da UNE, o PSTU empunhava bandeiras de seu coletivo de estudantes próprio, a ANEL etc). Hoje, nenhum petista engana ninguém nem mesmo ao tentar esconder o rosto: a população já sabe muito bem quem são os players no game, e não se deixa mais enganar com a mesma facilidade.
O discurso revolucionário também exige um timing perfeito, o que os gregos chamavam de kairós: o momento exato em que uma ação é possível, como atirar com arco e flecha e acertar um alvo. Um átimo antes ou depois e o kairós se perde. Se era possível fazer uma revolução modelo jacobino-bolchevique em junho de 2013, quem cairia ainda na mesmíssima pantomima em 2017, já pós-black blocs, pós-petrolão, pós-impeachment, pós todo o discurso da esquerda se esfarelar diante do país?
As contradições inerentes desse discurso também são imperceptíveis a jovens, mas não convencem quem já foi às ruas e se sentiu enganado. Não se argumenta contra um sentimento e uma experiência.
A aleivosia de que impeachment é golpe (para exigir “impeachment” um segundo depois contra um presidente rival), de que Temer foi eleito por quem não votou 13, a grita por Diretas Já e Volta, Dilma e democracia na mesma frase, a bomba de fumaça que se joga para tentar disfarçar o desespero para Lula não ser preso, a exigência de um tratamento anti-policial aqui enquanto defendem a polícia assassinando verdadeiros inocentes na Venezuela… Quem um QI acima de 80, a inteligência de um Fábio Porchat ou Tico Santa Cruz, cai nessa?
O discurso que tenta ser genérico falando em “Diretas por direitos”, por exemplo, não convence ninguém que não a militância petista, aquela que já defende o partido a qualquer custo, em qualquer circunstância, de qualquer forma. Ao invés da pauta dos transportes, depois transformada em saúde, educação e contra a “corrupção”, não é algo que convença o povo: o discurso é auto-referencial, umbigocêntrico e serve mais como justificativa para si próprio do que como convencimento.
E por fim, a violência. Qualquer teórico da violência política, de Maquiavel a Antonio Negri, de Sun Tzu aos Black Bloc Papers, sabe que ela deve ser escalonada caso busque atingir algum resultado. A violência, ferir ou matar o opositor, é um meio muito eficaz de se dar golpes e se tornar um novo tirano, mas exige precisão.
Os black blockers em Brasília, que já haviam errado no tempero em 2013, perderam a mão de vez em 2017: ao invés de tentar conclamar pessoas, enganando-as como fizeram antes, para então usá-las quase como escudo  humano para suas tentações totalitárias, desta vez os revolucionários adolescentes, em desespero pela impopularidade de suas propostas que não conseguem mais enganar ninguém, partiram para o ataque logo de cara, incendiando prédios públicos (como é típico dos movimentos de massa, e o fogo continua sendo um simbolismo eterno e universalmente reconhecido) e causando um furdunço caríssimo, violento e perigoso que busca adiantar a revolução a todo custo (afinal, quem faz a segurança do Itamaraty, considerado órgão internacional? por que não fazer arruaça no Ministério da Justiça, do outro lado da praça?).
Para a sorte do país, a violência veio com um timing péssimo, só causando ainda mais repúdio na população normal ao ideário de esquerda. Quem saiu lucrando foi, justamente, Michel Temer, um presidente com o mesmo apelo de um pepino apodrecido, que agora finalmente conseguiu algo pelo com o qual a população concorda: chamar as Forças Armadas para impor a lei e ordem, exatamente as duas palavras que o povo mais gosta, e a esquerda mais odeia.
A tentativa de um botão de morto, de partir para o tudo ou nada, resultou em nada. A população rejeitou mais ainda a motivação umbigóide dos vândalos. E até mesmo viu um presidente sem popularidade, e provavelmente nos estertores de seu mandato, chamar o Exército e finalmente o povo gostar dele.
A desconexão de tempo, motivação, apelo e moral dos revolucionários teve o efeito oposto: ao invés de o povo ir às ruas para apoiar quem está quebrando tudo, a hashtag #LulaNaCadeia atingiu os Trending Topics mundiais do Twitter.
O Brasil, desde ao menos junho de 2013, não pode mais ser entendido pelos ditames da política tradicional. Lendo-o pela dinâmica da política de massas, ele se torna muitas vezes cansativamente previsível.

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