segunda-feira, 29 de maio de 2017

Nossos malvados preferidos
Merval Pereira - O Globo 
A Operação Lava-Jato está nos revelando um país que suspeitávamos existir, mas nos recusávamos a enfrentar de maneira rigorosa. Explicitações desmoralizantes de um modo de ser nada republicano revelam uma ética pública que reflete a moral privada, não apenas de corruptos e corruptores, mas de todos nós, cidadãos, que afinal de contas somos os responsáveis por colocar no Congresso e no Executivo figuras que necessariamente nos representam como sociedade.
Tão chocante quanto ver e ouvir delações de executivos da Odebrecht, especialmente de seu patriarca Emilio, explicando as relações promíscuas com parlamentares e governantes com um ar de superioridade de quem está nessa vida subterrânea há muitos anos, foi ver e ouvir o dono da JBS descrever um leilão de deputados contra e a favor do impeachment da ex-presidente Dilma, como se fossem os bois que compra para seu abatedouro.
Em consequência, revela-se outro defeito de nossa formação: temos malvados preferidos. Os nossos, quando denunciados, são perseguidos por conspirações subterrâneas, em alguns casos guiados até mesmo do exterior. Os outros, nossos inimigos, mais que adversários, são culpados de tudo e muito mais. O Ministério Público e a Polícia Federal têm o estranho dom de descobrir todas as safadezas de nossos inimigos e de perseguir implacável e injustamente nossos preferidos.
E é nessa dicotomia moral que está a raiz de nossos problemas. Enquanto perdoarmos nossos companheiros, encontrando as mais bizarras explicações para situações indefensáveis, e quisermos a letra dura da lei, ou mesmo aceitarmos ignorar a lei para punir nossos adversários, o país não sairá desse lamaçal em que nos encontramos faz tempo.
A situação é tão esdrúxula que os mesmos procuradores, a mesma Polícia Federal, são instituições respeitáveis quando descobrem as falcatruas em que um figurão tucano está metido, e passam a ser vendidos, com atuação política enviesada, quando anunciam os atos corruptos de um figurão do PT. E vice-versa.
Aproveitando essa lassidão moral, os corruptores agem nos dois lados, sem partidarização, oferecendo os mesmos préstimos a tucanos, petistas, peemedebistas e outras siglas menores, da mesma maneira que as raízes do mensalão estavam no empresário mineiro que ajudara o PSDB a testar sua tecnologia de corrupção com o dinheiro público.
Deu tão certo que o PT importou o método, mais aperfeiçoado até, e ampliando seu escopo, recém-chegado ao poder e carente de tecnologia mais avançada. Tinham experiência municipal, logo acostumaram-se aos novos ares federais, institucionalizando a roubalheira como método de governo.
A impunidade que campeava no país em relação aos criminosos do colarinho branco, fossem empresários ou políticos, permitia que esses esquemas se disseminassem na política partidária, assim como é apartidária a maioria parlamentar que hoje sustenta um governo do PMDB, PSDB, DEM e ontem sustentava um governo petista, e se prepara para novamente apoiar outro governo.
Hay gobierno? Soy a favor parece ser o lema desses nossos representantes, que continuam a agir da mesma maneira, sem se dar conta de que o país, aos trancos e barrancos, vai mudando e exigindo uma nova postura diante dos escândalos. E qual é a solução que está sendo tramada por baixo dos panos em Brasília?
Uma anistia ampla, geral e irrestrita que permita que ex-presidentes não vão para a cadeia, que atuais e antigos parlamentares sejam perdoados pelos financiamentos de caixas 1, 2 e quantas mais apareçam nas investigações criminais.
Não há uma alma que inclua nessa negociação um mea-culpa generalizado, não há quem imagine que é preciso colocar limitações às falcatruas, limitações apenas à atuação dos que os investigam. Mas há esperanças à vista. Assim como o esquema de corrupção nacional parece ser o maior já registrado na política internacional, justamente por isso nenhum país teve que realizar uma crítica tão drástica de suas práticas políticas, tendo os valores éticos como objetivo.
As instituições brasileiras resistem à crise, mesmo quando parecem consumidas pelas mazelas que estão sendo combatidas. Mas a sociedade precisa permanecer em estado de alerta para impedir que se perca essa oportunidade de avanços democráticos.
Porque ainda há quem considere que é preciso fechar os olhos a certos desvios éticos escancarados, para permitir que as reformas avancem. Ou que a suposta melhoria da desigualdade social justifica um ou outro desvio do líder populista. Sem compreender que todos os avanços conseguidos através de métodos corruptos são um atentado à democracia e têm bases falsas, que logo ruirão.

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