Tempos de Guerra Fria
Merval Pereira - O Globo
No terceiro e
último ciclo sobre o golpe de 64 promovido pela Casa do Saber/O Globo,
coube-me fazer, ontem, a mediação do debate sobre as lutas ideológicas e
a geopolítica internacional do qual participaram o jornalista, escritor
e ex-deputado federal Fernando Gabeira, o escritor Mário Magalhães,
autor da biografia de Marighella, e Celso Castro, diretor do CPDOC da
Fundação Getulio Vargas e especialista na história dos militares
brasileiros.
Discutimos como o cenário internacional interferiu
nos acontecimentos que antecederam e culminaram no golpe militar, a
partir da Guerra Fria, a disputa entre os dois grandes blocos, divisores
do mundo à época depois da 2ª Guerra Mundial: o capitalismo
representado pelos Estados Unidos e o comunismo representado pela União
Soviética.
Fernando Gabeira destacou o que chamou de “ilusões” dos
dois lados dentro desse conjunto da Guerra Fria. “Os militares achavam
que os brasileiros não sabiam votar e que enquanto houvesse eleição os
demagogos venceriam. Achavam que podiam ensinar o povo a votar, e
roubaram a principal motivação para o aprendizado, que é a liberdade”.
Mas
também a esquerda, lembrou Gabeira, sobretudo a armada, acreditava que
poderia servir de guia aos cidadãos. Os dois lados de certa maneira
achavam-se dirigentes dos destinos do país, comentou Gabeira, e se
afastavam “da ideia de que o povo, através de seu desenvolvimento,
poderia se aperfeiçoar”. Na verdade, comentei, nenhum dos lados
acreditava na democracia.
Havia ilusões também por parte da
esquerda armada, lembrou Gabeira, ressaltando que a ideia que vinha de
Cuba e se baseava no livro do Régis Debray era a chamada “teoria do
foco”, que dizia que o movimento revolucionário acabaria atraindo o
apoio das populações. “As ações armadas teriam um cunho pedagógico,
multiplicando as ações, e isso não aconteceu”.
O escritor Mário
Magalhães ressaltou que os movimentos armados sofreram uma derrota
política, pois, por mais que a tortura tenha sido decisiva para
desmantelar os grupos guerrilheiros, eles estavam isolados.
Celso
Castro, do CPDOC, ressaltou que na época, além do aspecto político da
disputa entre dois polos “havia também a questão dos valores culturais,
que teve importância crucial”. Ele lembra que os militares consideravam
que os jovens estavam influenciados pelos comunistas, pregando amor
livre, drogas, subversão dos costumes.
“Hoje esse tema parece
antiquado, mas naquela época você podia ser preso e torturado por essas
questões. Éramos uma sociedade profundamente conservadora, e se hoje
esses comportamentos são triviais, naquele momento essa dimensão
cultural era importante e gerou a censura às artes e a prisão de
intelectuais. Como doutrinação militar essa questão moral e bons
costumes era muito clara para não deixar o comunismo tomar conta da
juventude”.
Gabeira lembrou que a esquerda tinha problemas de
valores. “Os que abandonavam a luta nós chamávamos de “desbundados”,
alguns passaram a ser hippies, e achávamos que eles estavam traindo a
causa”. De certa maneira, eram “produto de uma propaganda capitalista
com o objetivo de dissolver a moral de nossos potenciais
revolucionários”.
Com relação à tortura, tanto Celso Castro quanto
Mário Magalhães chamaram atenção para o fato de ela ter sido um
instrumento institucional do regime militar. Gabeira lembrou que no
Tribunal Bertrand Russell sua tese sobre a tortura era muito semelhante à
de Hannah Arendt, cujo livro com a tese da banalização do mal provocou
muita controvérsia.
“Ainda não havia lido o livro da Hannah
Arendt, mas de certa maneira eu tinha consciência da sua tese”, comentou
Gabeira, falando sobre “a organização burocrática, a tentativa de
controlar racionalmente aquele processo e fazer uma repressão científica
que existia também na repressão brasileira”.
Eles não eram
simplesmente brutamontes que iam torturar por gosto, ressaltou Gabeira.
“Tirando um ou outro sádico, o que havia era um processo controlado por
um imenso escritório burocrático que orientava as torturas que eram
feitas nos porões da ditadura”.
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