Anão diplomático
Desde que subiu a rampa do Planalto, Lula conferiu à política externa as funções de promover o seu prestígio pessoal
DEMÉTRIO MAGNOLI - O Globo
É
possível errar o chute e balançar as redes do gol. Enquadra-se nessa
categoria dos erros certeiros o rótulo de “anão diplomático” pregado ao
Brasil por Yigal Palmor, porta-voz da chancelaria de Israel. Um país não
é um anão diplomático por dizer sempre coisas equivocadas, mas por
carecer de credibilidade mesmo quando faz declarações corretas. O Brasil
converteu-se num anão diplomático desde que, 11 anos atrás, Lula
inaugurou a sua “nova política externa”. Palmor pode ser uma figura
insignificante, o “sub do sub do sub do sub do sub do sub”, nas palavras
gentis do assessor especial da Presidência para assuntos
internacionais, Marco Aurélio Garcia, mas exprimiu em termos oficiais,
pela primeira vez, o que é voz corrente nos meios diplomáticos
internacionais.
A política externa constitui, de modo geral, uma
esfera singular na qual os governos subordinam o jogo partidário
doméstico a um certo consenso político que se costuma denominar
interesse nacional. A marca da “nova política externa” lulista é a
violação dessa regra. Desde que subiu a rampa do Planalto, Lula conferiu
à política externa as funções de promover o seu prestígio pessoal e de
atender às idiossincrasias ideológicas do PT, contrabalançando no plano
simbólico a ortodoxia do governo no terreno da economia. Dilma Rousseff
persistiu na linha de seu patrono, subtraindo apenas a primeira das
funções (afinal, dois sóis não devem brilhar no mesmo firmamento). O
produto final do desprezo pelo interesse nacional está sintetizado na
expressão pouco diplomática de um “sub do sub do sub do sub do sub do
sub” que não foi desmentida por nenhum de seus (supostos) seis chefes.
Nossa
Constituição, no artigo 4, enumera os princípios que deveriam reger a
política externa brasileira, esclarecendo o que são os interesses
nacionais permanentes. A “prevalência dos direitos humanos” emerge, ali,
como segundo princípio, antes da “não intervenção” nos assuntos
internos de outras nações. Contudo, sob o lulismo, o Itamaraty
acostumou-se a silenciar sobre as violações de direitos humanos
cometidas por regimes autoritários “amigos”, invocando como pretexto o
princípio da “não intervenção”. Cuba não será molestada por uma
declaração brasileira se encarcerar ou fuzilar dissidentes e a Venezuela
nada ouvirá se utilizar um Judiciário submisso para cassar mandatos de
opositores e aprisioná-los sem provas ou cercear as liberdades de
expressão e imprensa. A exceção é Israel: no caso particular do Estado
judeu, a “não intervenção” cede precedência à “prevalência dos direitos
humanos”, numa oscilação de pesos e medidas típica de um anão
diplomático.
A inconsistência tem o condão de destruir a
credibilidade diplomática dos países que negociam princípios. O Brasil
calou-se diante da anexação da Crimeia pela Rússia, violando os
princípios constitucionais da “não intervenção” e da “igualdade entre os
estados” com a finalidade mesquinha de não desagradar a Vladimir Putin
pouco antes da cúpula do Brics em Fortaleza e Brasília. Pelo mesmo
motivo, logo após o encerramento da reunião, fechou-se em constrangedor
mutismo diante da criminosa derrubada da aeronave da Malaysian Airlines
no leste da Ucrânia. O anão diplomático não distingue o certo do errado:
age caso a caso, segundo tortuosas conveniências políticas e
deploráveis tiques ideológicos. Figuras muito mais qualificadas que um
representante da ultra-direita do gabinete israelense têm motivos para
repetir o epíteto humilhante escolhido por Palmor.
Na nota
oficial divulgada pelo Itamaraty, o governo brasileiro condena “o uso
desproporcional da força por Israel na Faixa de Gaza”, uma declaração
precisa, embora incompleta. As leis de guerra obrigam os estados a usar
todos os meios para minimizar as vítimas civis dos efeitos de operações
militares. Israel comete crimes de guerra ao bombardear cidades e campos
de refugiados na Faixa de Gaza, uma área com estatuto de território
ocupado, o que agrava os crimes. O anão diplomático não disse isso, mas
por um motivo oportunista: a acusação precisaria se estender também ao
Hamas, que lança foguetes desgovernados sobre Israel e,
sistematicamente, utiliza os civis palestinos como escudos humanos para
seus militantes.
Palmor talvez seja seis vezes “sub”, mas falou
em nome do governo de Israel. Marco Aurélio Garcia é “sub” uma vez só:
tem status de ministro e opera como chanceler alternativo, algo como um
comissário do lulopetismo para política externa. Não há, portanto, como
duvidar da natureza oficial da declaração na qual caracterizou como
“genocídio” a operação militar israelense na Faixa de Gaza. A palavra,
escolhida com um propósito, é muito mais grave que a frase ofensiva de
Palmor.
Genocídio é o extermínio deliberado de um povo. O
massacre, deliberado ou não, de civis na Faixa de Gaza é um crime de
guerra, mas não pode, nem de longe, ser classificado como genocídio. A
Alemanha nazista praticou genocídio ao enviar milhões de judeus para as
câmaras de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial. A falsa acusação
de genocídio é assacada regularmente contra Israel, desde a fundação do
Estado judeu, por movimentos antissemitas de extrema-direita e
extrema-esquerda. Por meio dela, fabrica-se um abominável paralelo entre
Israel e a Alemanha nazista. A finalidade da manobra discursiva, como
sabe perfeitamente Marco Aurélio Garcia, é negar a legitimidade da
existência do Estado judeu. O anão diplomático rebaixa-se a um ponto
extremo quando se refestela no pântano da delinquência ideológica
antissemita.
É uma vergonha sem fim. Dilma Rousseff disse que, na
sua “opinião”, não ocorre um “genocídio”, mas um “massacre”, na Faixa
de Gaza, deixando implícita a avaliação de que a seleção da palavra é
uma questão de gosto. O anão diplomático simula desconhecer tanto o
significado das palavras quanto o peso da história.
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