Nicolás Cachanosky - IMB
A decisão judicial exige que a Argentina pague 100% de sua dívida em posse dos "holdouts" exatamente quando ela for pagar os títulos reestruturados em posse dos "holdins". De acordo com a sentença do juiz Griesa, a Argentina não pode pagar apenas alguns credores. Ou ela paga para todos, ou ela dá o calote. O pagamento estava marcado para o dia 30 de junho, mas não foi feito. A Argentina conseguiu mais 30 dias de carência, que terminam hoje, dia 30 julho. Se a Argentina não honrar a dívida, o país estará formalmente, e novamente, inadimplente.
Essa situação é complexa e vem gerando interpretações distintas — quando não opostas — de analistas e autoridades políticas. Algumas dessas interpretações, no entanto, não são bem fundamentadas.
Como a Argentina se tornou um mau pagador
Entender corretamente a situação da Argentina requer um pequeno contexto histórico.
No início da década de 1990, a Argentina implantou a chamada Lei de Conversibilidade, uma medida que visava restringir o Banco Central e acabar com a hiperinflação que vinha castigando o país desde meados da década de 1980 [leia todos os detalhes neste artigo]. Essa lei estipulou a paridade cambial de um peso por dólar, e decretou que o Banco Central só poderia emitir pesos quando a mesma quantidade de dólares houvesse entrado no país. Ou seja, o peso agora estaria lastreado em dólar. Cada peso emitido teria de ter a mesma quantidade de dólar em lastro.
A Lei de Conversibilidade era, portanto, mais do que um mero esquema de taxa de câmbio fixa. Era uma legislação que transformava o Banco Central argentino em um Currency Board cuja função era converter pesos em dólares à paridade de um para um. No entanto, havia brechas na lei, de modo que o Banco Central argentino ainda usufruía alguma flexibilidade para emitir pesos independentemente do influxo de dólares para o país. Exatamente por causa dessa brecha crucial, o Currency Board argentino seria mais bem caracterizado como "heterodoxo" em vez de "ortodoxo".
Ainda assim, mesmo com essa brecha, a Argentina não mais podia monetizar livremente seus déficits como fazia durante a década de 1980 no governo de Ricardo Alfonsín. Foi a livre monetização da dívida o que produziu a alta inflação que se degenerou em hiperinflação. Por causa de Lei de Conversibilidade durante a década de 1990, o governo de Carlos Menem não podia recorrer ao Banco Central argentino para que esse financiasse o déficit fiscal do governo via criação de dinheiro. Aí, em vez de simplesmente cortar gastos e reduzir o déficit, o governo Menem optou pela solução menos politicamente dolorosa: emitir títulos e se endividar.
Esses títulos foram majoritariamente comprados por estrangeiros, e são eles que hoje estão requerendo a quitação.
Como os títulos da dívida foram emitidos em dólares e os estrangeiros os compravam com dólares, a moeda americana entrava na Argentina e isso permitia que o Banco Central argentino — pela Lei de Conversibilidade — emitisse a quantidade correspondente de pesos.
Essa emissão de títulos da dívida durante a década de 1990 ocorreu em uma Argentina que já havia decretado moratória em sua dívida seis vezes desde sua independência da Espanha em 1816 (pode-se dizer que um terço da história da Argentina ocorreu sob situação de calote). Simultaneamente, o país também exibia um histórico questionável de proteção institucional aos contratos e aos direitos de propriedade. Com a poupança doméstica destruída após anos de inflação descontrolada durante a década de 1980 (e também nas décadas anteriores), a Argentina teve de recorrer aos investidores estrangeiros e mercado financeiro internacional para financiar seus déficits orçamentários. E devida à falta de credibilidade, a Argentina teve de "importar" credibilidade jurídica emitindo seus títulos sob a jurisdição de Nova York. Caso houvesse uma desavença com seus credores, a Argentina já havia deixado claro que aceitaria a decisão dos tribunais de Nova York.
Vários críticos atuais da decisão judicial alegam que os credores da Argentina — raivosamente rotulados de "fundos abutres" — conspiraram para abolir a soberania da Argentina. Mas isso é cortina de fumaça. A responsabilidade deve ser atribuída ao próprio governo da Argentina, que estabeleceu um longo histórico de falta de confiabilidade em honrar suas dívidas.
O caminho para a atual moratória
Esses títulos emitidos sob a jurisdição de Nova York durante a década de 1990 possuíam outras duas características importantes: a incorporação da cláusula pari passu e a ausência da cláusula de ação coletiva.
A cláusula pari passu especifica que a Argentina concorda em tratar todos os seus credores nos mesmos termos (especialmente no que diz respeito ao pagamento de cupons e principal). Já a cláusula de ação coletiva declara que, em caso de reestruturação da dívida, se uma determinada porcentagem de credores aceitar a reestruturação, então aqueles credores que recusaram a oferta (os "holdouts") automaticamente também terão de aceitar entrar na reestruturação.
No entanto, quando a Argentina caloteou seus títulos ao final de 2001, ela o fez com os títulos que incluíam a cláusula pari passo, mas que não requeriam a cláusula de ação coletiva.
Ou seja, pelo contrato que o próprio governo argentino ofereceu aos seus credores — contrato esse que não incluía a cláusula de ação coletiva —, qualquer credor pode exigir receber imediatamente sua parte devida mesmo que 99,9% dos credores tenham decidido aceitar a reestruturação.
E é exatamente isso o que ocorreu com o calote de 2001. Quando, após o calote, a Argentina ofereceu novos títulos (reestruturação) para seus credores, os "holdouts" avisaram a Argentina que, por contrato, eles ainda tinham direito a receber 100% dos títulos, pois estavam em "igualdade de condições" (pari passu) com aqueles que aceitaram a reestruturação. Ou seja, de acordo com os termos da dívida, a Argentina não pode pagar os "holdins" sem também pagar os "holdouts".
Entretanto, os governos de Nestor Kirchner e Cristina Kirchner, mostrando mais uma vez seu desprezo pelas instituições, decidiram ignorar os "holdouts", chegando ao ponto de completamente retirá-los da condição de credores oficiais — sendo essa uma das razões por que o nível da dívida em relação ao PIB é mais baixo nas estatísticas oficiais.
Pode-se dizer, portanto, que o juiz Griesa não fez nada além de simplesmente ler o contrato que o próprio governo argentino havia oferecido a seus credores. Não obstante, já se ouvem lamúrias na Argentina (e ao redor do mundo) sobre como a decisão de Griesa prejudica a seguridade jurídica dos títulos soberanos e da reestruturação da dívida argentina.
Só que o problema não está na decisão do juiz Griesa. O problema é que o governo da Argentina decidiu, mais uma vez, optar por déficits e gastos desenfreados a cumprir com suas obrigações. O veredito de Griesa sugere que um calote não pode ser usado como ferramenta política para ignorar os contratos ao bel-prazer de políticos. Uma decisão favorável ao governo da Argentina significaria uma carta branca para que os governos violassem seus próprios contratos, o que tornaria ainda mais difícil o acesso ao capital para países pobres.
Toda essa situação argentina pode ser simplificada por uma analogia: tente explicar ao seu banco que, dado que foi você próprio quem esbanjou e gastou toda a sua receita durante mais de uma década, você tem agora o direito de não quitar o empréstimo com o qual você comprou seu apartamento e seu carro. Quando o banco lhe acionar judicialmente por não cumprir seu contrato, explique ao juiz que você foi uma pobre vítima de maldosos fundos abutres, e que você tem o direito de ignorar seus credores porque você não pode ser importunado com o incômodo de alterar seus luxuosos e insustentáveis padrões de gasto. Aí, quando o juiz proferir a sentença desfavorável a você, tente explicar ao mundo por meio de jornais internacionais como a decisão do juiz representa uma injustiça que coloca em risco todo o mercado bancário internacional (como vem fazendo a Argentina recentemente).
Tente agora justificar a posição do governo argentino.
Nenhum comentário:
Postar um comentário