quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A guerra do Egito ao ateísmo
Mona Eltahawy - NYT
Khaled Desouki/AFP
Perseguir minorias em nome da moralidade pública é uma técnica testada e comprovada dos regimes autoritários.
Bastou uma sessão em 10 de janeiro para um tribunal na província de Beheira, no Delta do Nilo, sentenciar Karim al-Banna, um estudante de 21 anos, a três anos de prisão por dizer no Facebook que era ateísta. O advogado do estudante reclamou que lhe foi negado o direito até mesmo de apresentar defesa, mas um aspecto igualmente assustador no caso de Banna foi seu pai ter testemunhado contra ele.
Também revelador é que Banna foi originalmente preso, em novembro, quando procurou a polícia para prestar queixa de que seus vizinhos o estavam molestando. Isso foi depois de seu nome ter aparecido em um jornal local em uma lista de ateístas conhecidos. Em vez de protegê-lo, a polícia o acusou de insultar o Islã.
Essas parcerias de família, mídia e Estado não são incomuns em casos contra ateístas. Como o ateísmo em si não é ilegal no Egito, as acusações se baseiam em leis contra blasfêmia ou desrespeito à religião. Em 2012, um blogueiro de 27 anos, Alber Saber, foi sentenciado a três anos de prisão pela acusação de blasfêmia, devido à criação de uma página na Internet chamada "Ateístas Egípcios". Em 2013, o escritor e ativista de direitos humanos Karam Saber foi condenado por difamar a religião em sua coleção de contos "Where Is God?" (Onde está Deus?, em tradução livre).
Acusações semelhantes foram usadas para fins políticos contra a minoria cristã do Egito. Em 2013, um advogado cristão copta, Roman Murad Saad, foi sentenciado à revelia por "ridicularizar" o Alcorão. De 2011 a 2013, os tribunais egípcios condenaram 27 dos 42 réus acusados de desrespeito à religião.
Não causa surpresa que a condenação de Banna tenha ocorrido sob a presidência de Abdel Fattah el-Sisi, o ex-general do Exército que liderou a derrubada de Mohamed Mursi, da Irmandade Muçulmana, para se tornar presidente. Independente do lado para o qual penda a gangorra do poder no Egito –para os islamitas ou para os militares– é sempre um homem muçulmano conservador heterossexual que comanda a hierarquia moral. Quanto mais distante dessa identidade uma pessoa for, mais vulnerável ela se torna.
O governante nominalmente secular do Egito é mais católico que o papa, para usar uma metáfora de outra religião. Assumir o papel de defensor da moralidade pública é um lembrete deliberado que os islamitas não detêm o direito autoral da devoção. Isso não é novidade: o regime do presidente derrubado Hosni Mubarak frequentemente alardeava sua religiosidade para sobrepujar seus rivais islamitas.
Em nenhum lugar essa disputa de poder moral é mais veemente do que na coibição dos crimes religiosos e sexuais percebidos. Daí a caça às bruxas no Egito aos gays. Ativistas de direitos civis dizem que 2014 foi o pior ano em uma década para os gays no Egito, com pelo menos 150 homens presos ou levados a julgamento. Relacionamentos de mesmo sexo não são ilegais, mas os gays são visados segundo leis de "devassidão".
No mês passado, 26 homens foram presos em uma batida policial televisionada a uma casa de banho pública no Cairo. Os homens nunca deveriam ter sido presos, mas a surpresa foi todos terem sido absolvidos em 12 de janeiro. Compreensivelmente perturbadas com a provação de seus entes queridos, as famílias dos absolvidos cantavam "Aqui estão homens de verdade!" –visando reafirmar a identidade de seus parentes como muçulmanos conservadores heterossexuais.
Após o protesto que se seguiu à humilhação dos homens, a decisão do tribunal talvez tenha refletido um reconhecimento tácito do exagero da perseguição. Mas por que tanto barulho a respeito de grupos já marginais como ateístas e gays?
O Dar al-Ifta, o instituto para o estudo da lei islâmica que é responsável pela emissão dos éditos religiosos, foi merecidamente ridicularizado após ter publicado um relatório em outubro, dizendo que o Egito tinha o maior número de ateístas no Oriente Médio: exatamente 866 –um número dificilmente plausível em uma nação de 87 milhões. Mas a mídia pró-governo e as autoridades religiosas estão travando uma "guerra ao ateísmo". Os ateístas são descritos alternadamente como ameaças à segurança nacional ou como portadores de um vírus contagioso perigoso.
Nesse clima, é impossível avaliar as posições francas das pessoas sobre religião. Para aqueles que não se curvam à ordem oficial, uma política "não pergunte, não diga" no Egito há muito tempo fornecia cobertura. Mas admitir o ateísmo é um convite não apenas à prisão, mas um risco à própria vida.
Em um discurso neste mês em homenagem ao aniversário do Profeta Maomé, Sisi pediu aos líderes muçulmanos no Egito para iniciarem uma "revolução religiosa" em oposição à mensagem jihadista do Estado Islâmico. Ele também enviou seu ministro das Relações Exteriores a uma marcha em solidariedade após os ataques em Paris à sede do jornal "Charlie Hebdo" e um supermercado judaico.
A contradição na meta de Sisi de manter o homem muçulmano conservador e heterossexual no topo da hierarquia moral do Egito é flagrante. Não se pode sobrepujar os islamitas em sua devoção e liderar uma campanha contra minorias como ateístas e gays, e ao mesmo tempo condenar a violência extremista e exibir solidariedade para com a liberdade de expressão e liberdade de pensamento.
Esta semana marca o quarto aniversário da revolução de 2011. Apesar dela não ter resultado nas liberdades políticas que pedia, ela provocou um desenlace da autoridade que deixou os autonomeados guardiões morais do Egito desconcertados e em dificuldades. Armadas com as redes sociais, mais pessoas estão insistindo em perguntar e dizer –sobre a crença pessoal e identidade sexual. Um acerto de contas há muito é necessário em um país onde religião e moralidade com tanta frequência foram distorcidas para atender aos interesses políticos de seus governantes.
Apesar da repressão, os ateístas estão contestando abertamente a hipocrisia. As redes sociais permitem a aqueles que se "desviam" do modelo autoritário a encontrarem uns aos outros e a se expressarem de formas que o regime, seus homens de religião e sua mídia lhes nega. Uma revolução religiosa começou, mas não nos termos de Sisi ou dos clérigos. Nós todos ganharemos se pais não mais testemunharem contra filhos, se famílias não mais sentirem a necessidade de provar que seus entes queridos são "homens de verdade".

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