quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Auschwitz, um campo que resume todo o horror nazista
Guillermo Altares - El País
O sistema de extermínio nazista envolveu todos os estamentos do Estado, toda a administração alemã colaborou de uma forma ou de outra com a Shoah. E tudo pode se resumir em um só lugar: Auschwitz, de cuja libertação se completa nesta terça-feira (27) o 70º aniversário. "Não digo que cada alemão, mas sim que cada ministério, cada elemento organizado da sociedade, mesmo que parecesse pacífico, teve seu papel", indicou o historiador Raul Hilberg em uma entrevista a este jornal.
Hilberg (1926-2007), que colaborou na compilação de documentos para os julgamentos de Nuremberg, é autor do que se considera o estudo mais importante para entender o Holocausto, "A Destruição dos Judeus da Europa" (ed. Akal), um trabalho monumental de 1.500 páginas ao qual dedicou toda a sua vida. O livro concede grande espaço aos trens, porque Hilberg afirmava que "são as ferrovias que melhor podem explicar a história". E a situação geográfica de Auschwitz, o mais gigantesco campo da morte nazista, se explica exatamente porque ali se encontrava um importante nó de comunicações ferroviárias. "Auschwitz, em seu destrutivo dinamismo, foi a encarnação física dos valores fundamentais do Estado nazista", escreveu o historiador Laurence Rees em "Auschwitz - Os nazistas e a Solução Final" (ed. Crítica), um livro e um documentário da BBC.
Apenas dois meses depois da chegada de Hitler ao poder, os nazistas abriram o primeiro campo de concentração, em 1933. Mas quando começaram a implementar a Solução Final, o extermínio dos judeus da Europa, o sistema dos Lager [campos] deu um salto no horror. O Estado hitlerista instaurou dois tipos de campos, os de concentração, destinados a matar com trabalho escravo todo tipo de inimigo político e aqueles que consideravam elementos racialmente impuros, desde judeus até homossexuais, comunistas ou republicanos espanhóis, e os de extermínio, destinados à aniquilação direta de seres humanos em câmaras de gás, todos eles situados na Polônia ocupada.
Em sua obra principal, Hilberg explica a evolução do antissemitismo doentio dos nazistas até o Holocausto: as primeiras leis raciais, as primeiras perseguições, os guetos e, desde o início da Segunda Guerra Mundial, os chamados "Einsatzgruppen", os batalhões de execução que na Polônia e na antiga União Soviética assassinaram milhões de judeus a céu aberto (calcula-se que a metade dos 6 milhões de mortos no Holocausto foi assassinada em campos e que a outra metade foi executada). Entretanto, os arquitetos da Solução Final consideraram esse método insuficiente, por sua lentidão e pela enorme pressão psicológica que exercia sobre os assassinos. Uma das muitas coisas que conta o grande escritor italiano Primo Levi (1919-1987) no primeiro volume de suas memórias de Auschwitz, "É Isso um Homem?", é que os encontros com os guardas das SS eram raros porque haviam criado todo um sistema para manter-se o mais longe possível do horror direto. Isso faz parte da "banalidade do mal" que descreveu Hannah Arendt - que, diga-se de passagem, manteve uma longa polêmica com Hilberg, embora tenha utilizado muito seu livro em seu ensaio "Eichmann em Jerusalém" - e que com 50 mil guardas permitiu sustentar todo o sistema dos campos da morte.
Assim, surgiu uma das ideias mais diabólicas da história, o extermínio industrial de um grupo étnico por meio de câmaras de gás. Foram criados seis campos de extermínio, todos na Polônia ocupada, todos situados perto de nós de comunicações: Chelmo, Belzec, Treblinka, Sobibor, Maidanek e Auschwitz-Birkenau. Mas este último era diferente dos demais, por seu gigantismo e porque também era um campo de concentração, do qual dependiam dezenas de pequenos Lager. Birkenau, onde ficavam as câmaras de gás e os fornos crematórios, era uma cidade da morte, que chegou a conter 70 mil presos de uma vez. Mas existia todo um sistema de campos de concentração satélites, nos quais se utilizava o trabalho escravo dos presos, também submetidos a todo tipo de tormentos de fome, maus-tratos físicos, medo e terror.
Os números são tão selvagens que se torna quase impossível imaginar: pelo complexo de Auschwitz passaram 1,3 milhão de deportados, dos quais 200 mil sobreviveram. Um milhão de presos foram judeus de quase todos os países da Europa, 450 mil deles húngaros. Morreram também ciganos, presos políticos poloneses, prisioneiros de guerra soviéticos, homossexuais, testemunhas de Jeová... Treblinka, que era um campo relativamente pequeno, era pensado só para matar. À diferença de Auschwitz, não ocorriam habitualmente seleções de presos para determinar quem devia morrer e quem devia viver. Todos estavam destinados à morte. Aqui, novamente, os números superam a razão: entre julho de 1942 e outubro de 1943, 750 mil seres humanos foram assassinados.
Na citada entrevista a este jornal, Hilberg explicou assim o sistema de extermínio: "Fora da União Soviética ou da Polônia não ocorreram assassinatos maciços ao ar livre, não se assassinavam os judeus e se atiravam seus cadáveres ao Reno. Era preciso levá-los e que ninguém soubesse aonde iam ou o que acontecia com eles. Talvez sejam as ferrovias as que melhor podem explicar a história. Demorei muitos anos para encontrar documentos sobre as ferrovias, mas finalmente encontrei os arquivos sobre a construção de Auschwitz em Moscou. A famosa linha férrea que passa por baixo da chamada Porta do Martírio até as câmaras de gás só entrou em funcionamento em abril de 1944, data a partir da qual foram exterminadas 60% das pessoas ali assassinadas. É fascinante a correspondência entre as SS e os responsáveis pela ferrovia, lá está tudo.
As SS não podiam pressionar as ferrovias, que tinham enorme poder, já que o esforço bélico dependia delas e eram quem decidia as prioridades. As SS exigiram a construção dessa linha até as câmaras de gás e então as ferrovias disseram que sim, mas que devia ser paga pelas SS porque se tratava de uma linha privada, um argumento que utilizaram sob o abrigo de uma lei da Baviera. Foi o tipo de correspondência que descobri, e é a forma de compreender a mentalidade dessa gente. Pagava-se por deportado, mas só a tarifa de ida, a metade da tarifa quando eram crianças ou uma tarifa de excursão se fossem mais de 500... Pode parecer muito estranho, mas é a forma como se fez. Eles tentavam pintar tudo de normalidade, como se falassem da organização de férias, e não do extermínio maciço de seres humanos".
Auschwitz, que esteve em operação entre junho de 1940 e 27 de janeiro de 1945, quando foi libertada pelas tropas soviéticas, encarna todo esse sistema, que tinha como objetivo a aniquilação física, mas também moral das vítimas. Nisso todos os campos eram iguais. Como escreveu Primo Levi, "na prática cotidiana dos campos nazistas se realizavam o ódio e o desprezo difundido pela propaganda nazista. Aqui não estava presente só a morte, mas uma multidão de detalhes maníacos e simbólicos, todos tendentes a demonstrar que os judeus e os ciganos e os eslavos são gado, dejetos, imundície".
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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