quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O Holocausto pelo olhar dos soviéticos
Jacques Mandelbaum - Le Monde
Durante alguns anos, os historiadores tomaram a iniciativa de documentar imagens dos campos nazistas. Exposições memoráveis marcaram esse trabalho, desde "Mémoire des camps" (Hôtel de Sully, 2001) na área de fotografia, até "Filmer les camps" (Mémorial de la Shoah, 2010) na parte de filmes. Esse trabalho que questiona e classifica (quem, onde e quando filma ou fotografa exatamente o quê?) responde de maneira saudável a certos documentários que, por seu uso espetacular, estetizante e não pensado dos arquivos, revelam sua vocação de testemunho e confundem a compreensão dos acontecimentos.
Na ocasião do 70o aniversário da libertação dos campos, foi inaugurado um novo evento para marcar a data. "Filmer la guerre : les Soviétiques face à la Shoah (1941-1946)" [Filmando a guerra: os soviéticos diante do Holocausto], que fica em cartaz de 9 de janeiro a 27 de setembro de 2015 no Mémorial de la Shoah,  exibe e coloca em perspectiva imagens em grande maioria inéditas, fruto de um longo e minucioso trabalho de exploração conduzido por uma dezena de pesquisadores franceses em vários fundos de arquivos na Rússia, Ucrânia e Polônia. 
Raridade dos documentos 
É preciso ressaltar a raridade dos documentos que foram descobertos. Ao contrário dos cinejornais e dos documentários rodados pelas tropas angloamericanas durante a libertação dos campos de concentração no Oeste, o olhar dos cinegrafistas soviéticos por muito tempo esteve escondido da atenção tanto dos pesquisadores quanto do público. Duas razões explicam essa condição. Primeiro a guerra fria, que contribuiu para que esse material desaparecesse por trás da cortina de ferro. Segundo, a suspeita de que esses arquivos eram colocados a serviço da propaganda, na melhor das hipóteses através da reconstituição de cenas e dadas como verdadeiras (valorizar o Exército Vermelho comemorando a liberação de Auschwitz com figurantes), na pior das hipóteses através da montagem de provas falsificadas (o massacre de milhares de oficiais poloneses em Katyb, trabalho sujo do KNVD atribuído aos nazistas em um filme de 1944).
No entanto, é contra esses preconceitos que protesta uma das curadoras da exposição, a historiadora Valérie Pozner, pesquisadora do CNRS, especialista em história do cinema russo e soviético: "Nós quisemos estabelecer a importância dessas imagens esquecidas, contextualizá-las, mostrar sua complexidade. Era preciso ir além dos poucos clichês gastos a respeito delas. As pessoas criticam os soviéticos por eles terem reconstituído cenas em Auschwitz, mas esquecem de dizer que essas cenas nunca foram editadas. Também esquecem de lembrar que os americanos também fizeram reconstituições, sobretudo em Mauthausen. Da mesma forma, não se pode negar a autenticidade da maior parte desses documentos, só por causa do filme sobre Katyn. A verdade é que o conjunto dessas imagens constitui uma marca irrefutável e única daquilo que foi o Holocausto no Leste."
Na verdade, foram os próprios soviéticos, por razões geográficas e estratégicas, os primeiros, para não dizer os únicos, que estiveram em contato com os campos e os diversos rastros do extermínio dos judeus, concentrado no Leste. Em 1942 o Exército Vermelho partiu para a reconquista do território e descobriu, à medida em que avançava, a extensão dos abusos nazistas. Foi ele que viu a dimensão do massacre dos resistentes e dos civis, ele que constatou o assassinato de 1,5 milhão de judeus através daquilo que os historiadores chamam de Holocausto de balas, ele que libertou os campos de extermínio de Majdanek e de Auschwitz (a maioria dos outros foi desmantelada a partir de 1943, a exemplo de Treblinka e de Sobibor). 
Sentido pedagógico rigoroso 
Diante da extensão desses crimes, que não foram somente contra os judeus, os soviéticos criam a partir de 1942 uma comissão de inquérito extraordinária destinada a documentá-los, através de todos os meios necessários, como coleta de depoimentos, filme, relatórios. É esse o material exibido pela exposição do Memorial em um espaço relativamente exíguo, mas com um sentido pedagógico, ao mesmo tempo rigoroso, eficaz e sugestivo.
Ali são dissecadas várias horas de imagens filmadas, a maior parte sem som, apresentadas por fragmentos de poucos minutos. Muitas perguntas encontram ali suas respostas. De onde vêm essas imagens? De um material muito particular: compilações de rushes rodados no front e reunidos de acordo com critérios de lugar e tempo, essa pré-edição serve de certa forma de base de dados para os filmes definitivos, seja para notícias ou documentários (esses filmes, raramente vistos, são projetados paralelamente à exposição). Um material que apresenta o inconveniente de já ter eliminado um certo número de olhares originais, e a vantagem de oferecer um corpus que permita identificar as escolhas narrativas e políticas dos editores soviéticos.
Quem fez essas imagens? Cinegrafistas de guerra munidos de câmeras Eyemo, o principal deles sendo o célebre Roman Karmen, contratados e controlados pela direção política do Exército Vermelho, segundo dois imperativos principais, ligados à descoberta das atrocidades nazistas: a mobilização geral da população para o esforço de guerra e a incitação à vingança, e a gravação das provas pensando em um futuro julgamento. O que mostram afinal essas imagens? A dimensão e a virulência dos crimes, classificados a partir de vestígios (valas, ossadas, cadáveres, campos), constatados diante do estado dos sobreviventes, estabelecidos por testemunhas. O horror nu, em uma palavra, do projeto nazista, tal como foi atingido, por assim dizer, seu grau quimicamente puro nos territórios do Leste.
Esse horror já não foi visto, sobretudo nesses documentários angloamericanos que marcaram a memória coletiva? Não como aqui, onde ele ainda surpreende, filmado mais de perto, com detalhes, como sob o choque repetido de sua intensidade e de sua dimensão, por cinegrafistas estupefatos que nele se demoram.
Imagens terríveis de covas vazias, valas pútridas, piras quase fumegantes, restos humanos esmigalhados e vomitados pela terra, corpos esfolados, decompostos, que lhe sorriem do âmago de seu sofrimento. Imagens insuportáveis, difíceis de descrever ou de recomendar. No entanto é preciso tentar ver, no inferno de Auschwitz, carcaças de crianças abertas como em um açougue, cobaias leves dos experimentos conduzidos pelos médicos nazistas. Mas a construção pelo horror não é tudo.
Um dos eixos mais instrutivos da visita diz respeito à obliteração da realidade do genocídio. Sobre essa questão, a comparação entre as compilações de rushes descobertas nos arquivos e os filmes tirados delas se revela implacável.
Em janeiro de 1942, os soviéticos retomaram a cidade de Kertch, na Crimeia. Quatorze mil pessoas foram assassinadas, entre elas muitos judeus. Cadáveres encontrados na vala de Bagerovo foram filmados pelos cinegrafistas. As braçadeiras com estrelas de Davi que podiam ser vistas nos rushes sumiram dos cinejornais. Em janeiro de 1945, os cinegrafistas soviéticos filmaram intermináveis pilhas de objetos de judeus assassinados em Auschwitz: xales de oração, sapatos, malas, escovas de dentes...
Elizaveta Svilova, companheira de Dziga Vertov, fez um filme (Auschwitz, 1945) no qual os xales simplesmente desapareceram. E seria possível dar muitos outros exemplos, mas com a ponderação do alerta de Valérie Pozner: "A política dos soviéticos em relação ao reconhecimento do Holocausto é mais ambivalente do que se pensa. Em certos casos, é verdade que cada vez mais raros à medida que a guerra avançava, as vítimas judias eram identificadas como tais."
Mas em um país onde morreram 27 milhões de seres humanos, os 3 milhões de judeus soviéticos vítimas da "solução final" foram até o colapso da União Soviética considerados "pacíficos cidadãos soviéticos" vítimas da barbárie nazista, para usar a expressão consagrada por Viatcheslav Molotov. Assim, até os libertadores que tiveram a oportunidade de descobrir os vestígios desse "crime sem vestígios" que foi o Holocausto, não o nomeiam.
"Filmer la guerre : les Soviétiques face à la Shoah (1941-1946) ». Mémorial de la Shoah, 17, Rua Geoffroy-l'Asnier, Paris 4e. Tel. : 01-42-77-44-72. De 9 de janeiro a 27 de setembro. memorialdelashoah.org

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