Ainda dava para ver o sol, quando a campainha tocou e eu fui quem poderia ser.
Era ela. Carregava uma caixa enorme de papelão. Abri o portão e ela entrou me cumprimentando. Entregou-me a caixa e disse:
- Trouxe-lhe um presente, mas não deu para embrulhar porque eu peguei as coisas escondidas do meu pai.
A caixa estava lacrada com fita adesiva. Era pesada.
Convidei-a para entrar e enquanto abria a caixa com o meu canivete, ela se serviu de vinho.
O presente consistia em litros de uísque, vodca, conhaque e tequila.
Três garrafas de Logan, quatro garrafas de vodca Wyborowa (duas puras e duas com sabor abacaxi), duas garrafas de conhaque Hennessy Paradis Extra e duas garrafas de tequila Don Julio Reposado.
Devo ter feito uma cara de surpresa, porque ela ria bem alto, chegando inclusive a se curvar na cadeira de tanta risada.
- Você acha engraçado, mas não tem idéia de quanto custa cada garrafa de conhaque dessas.
Seu pai vai ficar uma arara quando der pela falta dessas garrafas!
- Você fala engraçado! Ficar uma arara... minha vó que falava assim! Meu pai temmmmmmmmmmmmm muuuuuuuuiiiito dinheiro, não vai sentir falta dessas garrafas. Além disso, eu gosto de bebidas destiladas e pretendo vir mais vezes aqui.
E antes que eu pudesse falar qualquer coisa sobre roubo ela me calou com um beijo nos lábios.
Onde eu iria para com isso tudo eu não sabia, mas ela era a dona da bola, e talvez do jogo também.
Ela, numa petulância, que depois fui perceber, artificial, foi até o living e começou a mexer nos meus antigos vinis. Perguntou se o aparelho Gradiente funcionava. Disse-lhe que sim, mas não acreditava que ela fosse encontrar algo do gosto dela para escutar.
- Isso eu verei agora.
Meu Deus, pensei. De repente ela grita:
- Uau! David Bowie! Vou colocar pra tocar!
Escolheu a faixa, pôs a agulha e logo Bowie estava cantando:
- I/I will be king/ And you/You will be queen.
- Heroes, cara! FasequeBowiegravoudiscosantológicosemBerlim, ela falou assim, de uma vez só.
Não esperou resposta e cantou junto o trecho que dizia:
- We can be Heroes/Just for one day.
- Eu te acho assim, um herói. Um D. Quixote! Eu trouxe mais algumas coisas que estão na minha bolsa, se você não se importar com os meus cigarros alternativos, é claro. Se você quiser, eu vou embora, é só falar.
Ela estava esparramada no chão, sobre o tapete da sala, diante do aparelho de som. Seus cabelos volumosos esparramados pelos seus ombros e a minha vida esparramada pelo destino.
Seus olhos castanhos fazendo par com os cabelos se insinuavam.
Pensei: nunca vou deixar essa tigresa sair daqui. Nem se chamarem o resgate, bombeiros ou trouxerem o BOPE ela escapa das minhas mãos.
- Acenda o que você quiser, tigresa.
- Tigresa! Taí gostei da palavra. Geralmente os garotos da minha idade se referem a mim como potranca.
- Uau! Dessa vez fui eu que exclamei.
Ela se levantou passou por mim, resvalando seu corpo no meu, e foi até a cozinha pegar a sua bolsa que havia ficado numa das cadeiras da mesa.
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