sexta-feira, 4 de julho de 2014

Efeitos da 1ª Guerra ainda repercutem cem anos depois
Jérôme Gautheret - Le Monde
O turbilhão de comemorações no qual a França está imersa desde o início do ano, com ápices recentes no 70º aniversário do Desembarque na Normandia e no pontapé inicial do centenário da Primeira Guerra Mundial, com alguns dias de intervalo, oferece um contraste surpreendente.
Julguem por si mesmos: no dia 6 de junho, sobre as praias da Normandia, as potências ocidentais comemoravam, apesar da crise ucraniana e das reticências, o Desembarque e a vitória sobre a Alemanha nazista. Barack Obama e Vladimir Putin dividiam o mesmo palanque, juntamente com dezenas de outros chefes de Estado. É claro, alguns sorrisos tinham algo de forçado, mas não faltou quase ninguém na foto de família.
Diversos jornais anglo-saxões apontaram facilmente que o abraço entre dois combatentes veteranos, um francês e um alemão, no encerramento da cerimônia, assim como a celebração da construção europeia provavelmente se deviam mais à onda eurocética constatada durante as eleições de 25 de maio do que ao rigor histórico: o Desembarque não tem muito a ver com a reconciliação que tornou possível a União Europeia.
Em compensação, ele deve tudo à aliança indefectível de Londres e Washington, essa "escolha do 'grand large' [relação transatlântica]", reivindicada por Churchill, em nome da qual o general De Gaulle recusou o ingresso do Reino Unido no mercado comum. Essa inconveniente realidade teria sido perigosa de se celebrar em 2014, nesse momento em que a tentação de os britânicos deixarem a UE parece mais forte: ela foi dispensada em perfeito consenso geral.
Três semanas mais tarde e 2.000 quilômetros mais longe, em Sarajevo, para o centésimo aniversário do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, ponto de partida da espiral que levou à Primeira Guerra Mundial, as comemorações ofereciam o espetáculo inverso: manifestações dentro e fora da cidade, sérvios-bósnios inaugurando uma estátua de Gavrilo Princip, o assassino do arquiduque, no leste da cidade, em resposta às comemorações oficiais, que são acusadas de colocarem sobre Belgrado o peso de uma responsabilidade exclusiva no desencadeamento da tragédia.
A justaposição desses dois aniversários, com algumas semanas de intervalo, só ressalta mais uma vez o quanto a Europa, embora tenha superado em grande parte o trauma da Segunda Guerra Mundial, ainda não se livrou das consequências da Primeira.
A construção europeia é filha da paz de 1945 e da questão central do conflito (o combate ao fascismo, valor comum às democracias), e permite a criação de uma narrativa comum, através das comemorações relativamente apaziguadas. No caso da Primeira Guerra Mundial, a situação é mais complexa. Primeiro porque o confronto não se presta a uma leitura política única, atribuindo a responsabilidade exclusiva a um campo ou a uma ideologia, mas sobretudo porque os tratados de paz geraram inúmeros rancores e frustrações que permanecem palpáveis até hoje.

Feridas escancaradas

É verdade que o sentimento de humilhação alemão após o Tratado de Versalhes (1919) foi amplamente obliterado pelo horror nazista, mas no leste da Europa as feridas dos derrotados continuam escancaradas. É especialmente o caso do antigo espaço austro-húngaro, submetido a uma mudança radical na delimitação das terras, que deu a melhor parte aos vencedores. Assim, a Hungria, perdendo dois terços de seu território na conclusão do Tratado de Trianon (1920), não superou a perda de províncias como a Transilvânia, coração histórico do reino magiar.
Os militantes do Jobbik (extrema direita), que tem a adesão de quase um entre cada cinco eleitores, ainda reivindicam a reparação do "crime" de Trianon, bem como a volta à "Grande Hungria", e esse discurso tem seu impacto sobre o partido no poder, o Fidesz, de Viktor Orban, que tem feito acenos discretos às minorias húngaras dos países vizinhos.
Os vencedores não estão necessariamente melhores: a Sérvia, por exemplo, recebeu em 1919 um status dominante dentro da Iugoslávia. Foi um cálice envenenado que logo viria a provocar tensões inter-étnicas e ressentimentos: 70 anos mais tarde, o país se desintegrou, deixando a Sérvia em ruínas.
Mas, as consequências dos tratados não param nas fronteiras do antigo império dos Habsburgos. A violência dos termos do Tratado de Sèvres, que organizava o desmembramento do Império Otomano, provocou na Turquia o surto kemalista, a expulsão de milhões de gregos da Anatólia e a instauração de uma república de nacionalismo radical, cuja negação do genocídio cometido contra os armênios em 1915 continua sendo o aspecto mais contundente.
Mais longe ainda, o colapso do Império Otomano também levou a uma nova delimitação das fronteiras do Oriente Próximo, tendo como consequência a criação de Estados heterogêneos e fracos do ponto de vista estrutural. Assim, os jihadistas do EIIL que estão tentando implantar um Estado islâmico sunita entre a Síria e o Iraque só estão contestando uma reconfiguração nascida na Primeira Guerra Mundial.
Um século mais tarde, e o mundo ainda sofre com os efeitos vertiginosos do atentado de 28 de junho de 1914 em Sarajevo.

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