Argentina precisa de rompimento dos laços impróprios entre espiões, juízes e promotores
Horacio Verbitsky - NYT
Natacha Pisarenko/AP
Em 14 de janeiro, um promotor chamado Alberto Nisman acusou a presidente da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, e seu ministro das Relações Exteriores, Héctor Timerman, de acobertarem o suposto papel do Irã em um ataque terrorista em 1994.
Nisman foi encontrado morto quatro dias depois, poucas horas antes da apresentação do relatório de sua investigação ao Congresso argentino. Manchetes de jornal de todo o mundo sugeriram que o governo é de alguma forma responsável por uma dessas tragédias ou ambas. Eu não acredito nisso.
Antes de ter sido encontrado com uma bala na cabeça, Nisman passou quase uma década investigando o pior ataque terrorista na história da Argentina –o atentado a bomba a um centro comunitário judaico em Buenos Aires, que matou 85 pessoas em julho de 1994. A morte dele chocou o país e desviou a atenção de seu relatório do inquérito de 290 páginas. A oposição viu a audiência no Congresso como uma arma contra o governo. O partido da situação, por sua vez, estava preparando a contestação do relatório.
A mídia agora está vazando fragmentos das 5.000 horas de interceptações de inteligência, nos quais nem a presidente e nem o ministro das Relações Exteriores aparecem. Além disso, são muitos os rumores sobre se Nisman foi assassinado ou se matou.
Kirchner mudou de posição, primeiro presumindo que foi suicídio e, depois, sugerindo que não foi. É um ano eleitoral e, apesar dela não poder concorrer a outro mandato, sua hesitação não ajuda seu partido.
Especulação à parte, é importante questionar a veracidade das acusações feitas no relatório, que aponta o dedo para o Irã. O documento, que foi publicado online em espanhol, é contraditório.
Primeiro, ele acusa Timerman –um judeu que já foi vítima da ditadura antissemita que sequestrou e torturou seu pai– de buscar revogar os mandados de prisão da Interpol aos iranianos acusados. Então ele cita um grampo telefônico, no qual um suposto agente iraniano denuncia Timerman com insultos antissemitas por não revogar os mandados de prisão.
Nisman foi repreendido por essa alegação por um homem que ele elogiava –o ex-secretário-geral da Interpol, Ronald K. Noble. O relatório repete 96 vezes que Kirchner e Timerman tentaram revogar os mandados da Interpol contra os iranianos acusados. Mas Noble, que supervisionou os mandados, nega isso e diz que os líderes da Argentina fizeram consistentemente o oposto.
Em uma entrevista em 18 de janeiro, Noble declarou: "As alegações de Nisman são falsas". No mesmo dia, Nisman foi encontrado morto.
É estranho que um promotor experiente como Nisman preparasse um documento tão fraco se sua meta era apresentar acusações sérias contra a presidente e o ministro das Relações Exteriores. Das 290 páginas, apenas duas mencionam possíveis violações da lei, mas sem nenhuma referência a doutrina legal ou jurisprudência. Consequentemente, muitas pessoas acreditam que o documento não foi escrito por um advogado e que Nisman foi enganado e usado.
A chave para a história provavelmente não será encontrada no atual governo, mas sim no do ex-presidente Carlos Menem. Menem é descendente de sírios e, antes da eleição presidencial da Argentina de 1989, se encontrou em Damasco com o líder sírio, Hafez al-Assad, que o apoiou financeiramente. A participação da Argentina na Operação Tempestade no Deserto contra o aliado da Síria, o Iraque, em 1991, estragou esse romance. Então, em 1992, a embaixada israelense na Argentina foi atacada e, em 1994, o centro comunitário judaico sofreu o atentado a bomba.
Documentos secretos que deixaram de ser confidenciais em 2003 revelavam que o primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, enviou um emissário pessoal à Argentina poucas horas depois do ataque em 1994 para chegar a uma interpretação comum dos eventos e apresentá-la à imprensa. Na época, Rabin enfrentava pressão política em casa de seus oponentes nas negociações de paz em Oslo com os palestinos, que estavam ocorrendo pela primeira vez com aprovação síria.
Após sua reunião com Menem, o emissário de Rabin acusou o Irã pelo ataque. Na mesma semana, um porta-voz do Departamento de Estado em Washington foi além e excluiu a Síria da lista de suspeitos.
Menem também considerou politicamente conveniente desviar a atenção da Síria, e ele fez tudo o que podia para impedir que um envolvimento sírio fosse investigado, devido ao seu relacionamento anterior com o governo Assad e suas promessas não cumpridas à Síria de apoio diplomático e cooperação em tecnologia nuclear e de mísseis.
Hoje, Menem está sendo julgado, juntamente com alguns de seus ministros, um juiz e dois promotores, pela acusação de obstrução da Justiça e acobertamento de evidências a respeito do ataque de 1994.
Minha organização, o Centro para Estudos Legais e Sociais, representa um grupo das vítimas do ataque. Em 2005, Néstor C. Kirchner, o presidente da Argentina na época, reconheceu a responsabilidade do Estado por fracassar em impedir o atentado ou solucionar o crime.
Um acordo foi acertado, no qual o governo prometeu modificar a lei de inteligência da Argentina que impedia interferência do Judiciário. Levou quase uma década até a viúva de Kirchner, que agora preside o país, começar a cumprir esse acordo.
Em dezembro passado, Cristina Kirchner pareceu finalmente cumprir a promessa de seu falecido marido de remover o alto escalão do Serviço de Inteligência, em uma tentativa tardia de limpar a casa. A morte de Nisman pode ter sido uma consequência. Muitos acreditam que o chefe das operações de inteligência demitido, Antonio Stiuso, forneceu as informações a Nisman e pode estar envolvido em sua morte.
Segundo o relatório do promotor, o Memorando de Entendimento, que a Argentina e o Irã assinaram em janeiro de 2013, facilitou um acobertamento, cuja meta secreta era permitir à Argentina a compra de petróleo iraniano –algo altamente improvável, devido ao alto conteúdo de enxofre do petróleo iraniano, seis vezes a quantidade permitida pelas refinarias argentinas. Mas o propósito de fato do memorando era permitir a um juiz interrogar os iranianos acusados e montar uma Comissão Internacional da Verdade, composta por juristas de prestígio de outros países.
Assinar um memorando com a ilusão ingênua de que possa algum dia levar os acusados perante um tribunal, como no caso da Líbia e o atentado de Lockerbie de 1988, não constitui um crime. O governo da Argentina não sabe quem é culpado, mas deseja permitir que o Judiciário descubra.
A morte de Nisman e a incerteza que persiste sobre o ataque de 1994 expuseram as falhas na Justiça argentina e sua relação promíscua com o establishment da inteligência.
As reformas prometidas não podem mais ser adiadas. A Argentina precisa de mais transparência, mais supervisão dos serviços de inteligência e o rompimento dos laços impróprios entre espiões, juízes e promotores.
Kirchner anunciou a dissolução do Secretariado de Inteligência e a criação de uma agência federal de inteligência nesta semana. Esse é apenas o primeiro passo para proporcionar justiça às vítimas do ataque de 1994 e à família de Nisman.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
Nenhum comentário:
Postar um comentário