Ataque na França expõe guerra civil global islâmica
Combate ao radicalismo de militantes de grupos
como Al-Qaeda e Estado Islâmico será, mais uma vez, o desafio do ano,
dizem analistas
RENATA TRANCHES - O Estado de S.Paulo
Os ataques em Paris intensificaram uma das frentes do que
analistas consideram ser uma guerra civil islâmica global. Os episódios,
na primeira semana do ano, mostraram que a luta contra o radicalismo
islâmico, personificado em grupos como o Estado Islâmico (EI) e a
Al-Qaeda, mais uma vez, estará entre uma das mais importantes crises de
2015, segundo especialistas ouvidos pelo Estado.
O analista do Wilson Center e do Instituto para o Diálogo Global Francis
Kornegay explica que a Europa tornou-se um dos campos da batalha que o
Islã trava internamente entre suas diferentes correntes e visões. O
epicentro desse conflito está no Oriente Médio, Sul da Ásia, Norte do
Cáucaso e se estende às diásporas muçulmanas no Ocidente.
A
aliança que provocou um terremoto político e econômico ao recusar os
princípios da austeridade fiscal e assumir o poder na Grécia na semana
passada, é inspirada por chefes de Estado como Luiz Inácio Lula da
Silva, Hugo Chávez e Evo Morales.
"Os ataques contra ocidentais são parte e uma parcela de uma dinâmica
interna dessa guerra civil dentro do Islã entre suas diferentes
tendências", reitera. Segunda maior religião do mundo, o Islã tem 1,6
bilhão de seguidores. Divergências sobre a sucessão após a morte do
profeta Maomé, em 632, deixou profundas divisões na religião que
separaram os muçulmanos entre sunitas, 85% dos fiéis, e xiitas, 15%.
Segundo Kornegay, esse atual conflito interno ocorre, primeiro, dentro
do próprio sunismo. As divergências se dão entre os moderados, como os
devotos do sufismo, por exemplo, e os fundamentalistas, representados
por salafistas e wahabistas, que fazem uma interpretação radical da
sharia, a lei islâmica. A Al-Qaeda e o Estado Islâmico seguem,
respectivamente, essas duas correntes conservadoras.
Apesar das discordâncias, todas as escolas do sunismo concordam em um
ponto central: a autoridade se baseia no Alcorão e nas tradições de
Maomé, sem interpretações. Com isso, explica Kornegay, está a raiz do
conflito com os xiitas, que acreditam que Deus sempre designa um guia,
primeiro entre os descendentes diretos de Ali, o genro de Maomé,
conhecidos como Imãs, e, depois, os aiatolás para guiá-los nas
interpretações dos ensinamentos do profeta.
Alvos. As diferenças vão além da religião e ditam os pilares para os
principais conflitos políticos e militares modernos entre as nações
muçulmanas, fazendo dos fiéis suas maiores vítimas. "Nesse contexto, a
Síria pode ser considerada a 'Guerra Civil Espanhola' dessa luta
titânica sobre o futuro do Islã", opina Kornegay, lembrando que assim
como ocorreu com o conflito espanhol, a guerra síria envolve todos os
elementos ideológicos dessa batalha global.
Dean Alexander, analista da Western Illinois University, explica que, ao
mesmo tempo, os participantes dessa "jihad global" agrava o conflito
elegendo locais e civis de várias partes do mundo como "alvos
legítimos". "Eles estão vinculados a combatentes cada vez melhor
treinados, ligados entre si por grupos ou ideologia", afirma.
Na sua opinião, o que o mundo viu na França foi um efeito, direto ou
indireto, de uma contínua degeneração do conflito no Iraque e na Síria.
"Vimos episódios em Paris, Ottawa, Sydney, Nova York, entre outros.
Além disso, grupos jihadistas com capacidade variada estão ativos na
África, desde o Mali e a Somália até Líbia e Nigéria", avalia Alexander.
"O conflito mais importante de 2015, assim como foi em 2014, será o
esforço de combate da coalizão de 60 nações contra o Estado Islâmico."
O "reforço" nas ações no fronte europeu jihadista já tem um reflexo
político imediato no continente. Trata-se de uma mutação das políticas
europeias para um padrão, segundo Kornegay, xenófobo e anti-União
Europeia convergindo com agendas fragmentadoras de direita, com o
possível apoio da Rússia, que também tem interesse na desintegração do
bloco. "Os ataques na França têm de ser vistos como combustível para
essa matriz."
Petróleo. Outra preocupação herdada de 2014, a queda do preço do
petróleo, que tem impacto em diferentes cenários no mundo, está também
interligada à questão do jihadismo global. Alexander afirma que uma das
explicações possíveis para que a Arábia Saudita esteja ajustando e
insistindo na redução do preço do petróleo seria, na verdade, uma
estratégia para sufocar uma das capacidades de financiamento do Estado
Islâmico. "Um das maneiras do EI de gerar lucros é contrabandeando o
petróleo."
Na outra ponta, países que atuam no combate ao grupo e sofrem com seu
avanço, como o Iraque, vê a queda nas receitas com o petróleo prejudicar
o financiamento de suas ações.
Na primeira reunião do ano da coalizão internacional sobre a estratégia
de combate ao Estado Islâmico, o primeiro-ministro do Iraque, Haider
al-Abadi, manifestou temor de que menores receitas do petróleo possam
prejudicar a campanha militar de seu país contra os militantes. A
economia e o orçamento do Iraque dependem 85% das exportações da
commodity.
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