segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Navios fantasmas: Turquia se torna trampolim para sírios com destino à Europa
Onur Burçak Belli, Manfred Ertel, Hasnain Kazim, Katrin Kuntz e Walter Mayr - Der Spegel
Paul Schemm/AP - 14.jan.2015
Marinheiros da Guarda Costeira da Islândia fazem patrulha durante a Operação Triton, que busca interceptar a entrada ilegal de imigrantes, especialmente da Síria e IraqueMarinheiros da Guarda Costeira da Islândia fazem patrulha durante a Operação Triton, que busca interceptar a entrada ilegal de imigrantes, especialmente da Síria e Iraque
O homem baixinho disse a Sherko para que se mantivesse sempre preparado. Esse é o motivo para Sherko estar agora sentado sob a luz fluorescente na cama de seu quarto de hotel em Mersin, uma cidade portuária na costa sul da Turquia. Ele preparou a mochila ao seu lado com os itens que precisa para sua viagem para a liberdade: 10 barras de Snickers, atum enlatado, perfume, lâmina de barbear, figos secos, fio dental e uma esponja para limpar seus sapatos.
Sherko, 27, é de Damasco. Ele tem um rosto fino, cabelo escuro e barba. Ele acabou de concluir a faculdade de direito, gosta de cantar canções árabes e sabe como fazer as tampinhas das garrafas de cerveja voarem pelo ar quando as abre. Ele e 13 amigos do mesmo bairro em Damasco chegaram juntos a Mersin. Eles incluem oculistas, cientistas da computação, estudantes e um homem que trabalha em uma agência de aluguel de carros. O mais jovem tem 18 anos e o mais velho tem 45. A maioria é de curdos sírios e todos fugiram para evitar o serviço militar.
O celular de um dos seus amigos toca enquanto Sherko está arrumando as coisas em sua mochila. É o baixinho que foi contratado para tirá-los de Damasco, para que pudessem começar uma nova vida em outro lugar. Eles não sabem o nome dele, apenas o chamam de baixinho. "Chegou a hora", diz o homem. "Vamos para o navio." Sherko pega a mochila, coloca seu boné, envolve no pescoço sua corrente de oração e parte com os outros.
O cargueiro, que está ancorado a poucas milhas náuticas da costa de Mersin nos últimos cinco dias e prosseguirá em seu curso para a Itália, os aguardará apenas por mais uma noite. Esta noite é a última chance deles. Se não chegarem ao navio, devido ao tempo ruim ou patrulhas da guarda costeira, eles terão que esperar semanas até a chegada do próximo navio.
Sherko e seus amigos já estão em Mersin há um mês. Eles passam seu tempo jogando cartas no quarto de hotel despojado, com seu carpete velho e uma placa de néon do lado de fora da janela. O baixinho telefonou várias vezes para eles e toda vez eles correram para encontrá-lo. Apenas uma vez eles chegaram perto o bastante para ver o cargueiro, um navio de 60 metros da cor de ferrugem. Mas então foram descobertos pela guarda costeira e forçados a voltar.
Dois mil dólares foi o valor pago por Sherko pela viagem. Barcos pequenos, relativamente inseguros, geralmente zarpam da Líbia ou do Egito. A vantagem a partir de Mersin é que navios maiores e velhos cargueiros, que também navegam no inverno, passam pelo porto.
Sherko volta apenas 10 minutos depois de sair correndo do quarto. Ele abre a porta, joga o boné em um canto, abre duas gavetas e as bate de novo. Seu amigo Saham, vestindo um suéter grosso de lã, se joga na cama. Outro amigo, Jon, vestindo três pares de calças, joga um punhado de nozes na boca. "Merda!" gritam os homens. "Merda!" De novo, o baixinho os reuniu e então cancelou a viagem, sem explicar o motivo.

Um negócio brutal, mas lucrativo

Dois meses se passaram desde que Sherko e seus amigos partiram de Damasco. Sherko diz que não queria matar ninguém, o que poderia acontecer caso fosse convocado e forçado a lutar pelo regime. Vinte e dois de seus amigos já morreram na guerra civil da Síria. Seu pai vendeu a casa da família por US$ 4.000 para pagar pela viagem. Quando ele partiu, Sherko abraçou seus pais, seus três irmãos e o gato. "Será que veremos você de novo?" perguntou sua mãe. "Inshallah", respondeu Sherko. Se Deus quiser. Ele chorou e deixou sua família.
Eles viajaram em um micro-ônibus, subornando soldados nos postos de controle. Em Beirute, eles tomaram um voo para a cidade turca de Adana, e dali viajaram para Mersin, no litoral. Eles foram recebidos por um homem que trabalhava para o baixinho, que conheceram pelo Facebook. Foi ali que Sherko posteriormente viu fotos dos dois cargueiros, o Blue Sky M e o Ezadeen, que levaram mais de mil refugiados para a Itália no final de dezembro. Um dos passageiros tirou uma selfie de si mesmo no Ezadeen. Parecia fácil e seguro. "Apressem-se", escreveu o contato em Mersin usando o WhatsApp. "O navio zarpa em dois dias."
Esta é a primeira vez de Sherko na Turquia, onde estão 1,6 milhão de refugiados sírios. Eles não precisam de visto e as autoridades turcas deverão emitir um número limitado de permissões de trabalho em breve. Mesmo assim, diz Sherko, ele não se sente bem-vindo. "Nós queremos ir para a Alemanha para trabalhar", ele diz. Há 60 mil sírios encalhados em Mersin, que se transformou no novo centro para tráfico de pessoas desde que a rota por terra, pela Grécia, se tornou mais difícil. O sonho de refugiados como Sherko criou um negócio brutal, mas lucrativo, aqui em Mersin.
O ajudante do baixinho levou os sírios do aeroporto ao hotel, que fica na principal rodoviária. Eles conheceram o baixinho, um sírio magro com olhos azuis saltados e cabelo castanho claro, no saguão. Ele não falou muito, mas se tornaria o único contato deles ao longo das semanas seguintes. O homem não disse para Sherko que a rede de traficantes consiste tanto de sírios quanto de turcos, que cada pessoa tem responsabilidades diferentes e que ele é apenas um elo minúsculo no fim de uma longa corrente.
São contrabandistas sírios que lançam a rede e recrutam constantemente novos passageiros. Eles criam páginas no Facebook e publicam números de telefone para os quais as pessoas podem ligar para reservar suas viagens. Então eles pegam os passageiros, os abrigam e os levam para a costa. Os turcos embarcam os refugiados em barcos de pesca e os levam até os cargueiros, que ficam ancorados em águas internacionais, a entre 12 e 15 milhas náuticas da costa. Um navio grande pode ficar ancorado por cinco dias sem enfrentar problemas com as autoridades locais.
O baixinho disse a Sherko que US$ 2.000 era um bom preço. A viagem em um dos dois cargueiros, o Ezadeen ou o Blue Sky M, custa entre 5.000 e 8.000 euros. Sherko leu no Facebook que o preço depende da ocorrência de checagens pela polícia, das condições do tempo e da dificuldade dos barcos de chegarem aos cargueiros. Ele foi informado que seu dinheiro seria devolvido se a viagem não desse certo. O negócio de refugiados tem regras claras, mas no final ele se baseia na confiança. E que escolha Sherko tinha, a não ser confiar em seu traficante?
A estrada que parte a leste de Mersin passa por campos e plantações de laranja. Em Karaduvar, um aldeia pesqueira, Murdock está ao lado da parede do cais. Ele está usando um boné de pescador e a palavra "Player" (jogador) está gravada em letras grandes em seu suéter. É o apelido dele, ele diz, e é baseado em um dos personagens principais da série de TV "Esquadrão Classe A". Murdock, um turco, é um dos homens para os quais o traficante trará Sherko. Ele é o próximo elo na corrente.

Criando um negócio a partir da miséria dos outros

"Eu organizo os barcos que partem para os grandes navios", diz Murdock, um homem sereno que raramente sorri. Ele sobe os degraus até um restaurante onde um violinista está tocando no andar superior e um homem está cantando em árabe. Ele pede raki e peixe frito. Ele passará as próximas quatro horas falando sobre sua vida e sobre o tráfico.
Murdock, 45, é da região central da Turquia. Ele costumava contrabandear cigarros para os soldados nas casernas e também vendia diesel isento de impostos em alto mar. Então ele entrou no negócio de contrabando de refugiados, levando iraquianos e palestinos para o Chipre. Ele sempre lucrou com a miséria dos outros. Então chegaram os sírios.
Ele tinha uma grande carga quatro semanas atrás, diz Murdock: 400 refugiados trazidos para Mersin de toda a Turquia por vários traficantes sírios. Ele diz que se reuniu com o grupo e, pouco antes da meia-noite, fez com que fossem pegos por pescadores em quatro locais diferentes ao longo da costa e levados ao cargueiro. Mas ele também já levou refugiados em seu barco em duas ocasiões, ele acrescenta. "Eles dançavam e batiam palmas após sua partida", diz Murdock. "Eles aguardaram por aquele momento por muito tempo."
Murdock não sabe os nomes dos navios. Mas é bem possível que um dos cargueiros tenha sido o Blue Sky M ou o Ezadeen.
Segundo os registros navais e os sistemas de tráfego, o Blue Sky Me, um navio de 81 metros de propriedade da companhia marítima romena Info Market SRL, partiu de Korfez, no nordeste da Turquia, em 14 de dezembro de 2014, supostamente com destino à Croácia. Ele passou pelo Mar de Mármara e, a partir de 20 de dezembro, começou a viajar de modo errático e em alta velocidade nas águas entre a costa sul da Turquia e o Chipre. Em 21 de dezembro, entre às 2h22 da manhã e 20h, o navio estava localizado em Silifke, perto de Mersin, viajando a apenas meio nó, lento o suficiente para receber passageiros a bordo. Por dois dias, ele navegou ao longo de uma rota curva na direção da Síria e de volta. Em 31 de dezembro, ele chegou à Itália com 797 refugiados a bordo. O capitão, um sírio, tentou se misturar aos refugiados, mas foi descoberto e detido.
Durante seu interrogatório na cidade italiana de Lecce, Sarkas Rani disse que tinha sido contratado sob o pretexto de levar uma carga de madeira e ferro para o Egito. Ele disse que após entregar a carga, ele foi chamado a Mersin, onde foi forçado a transportar os refugiados para a Itália. Mas há muitos indícios de que Rani estava mentindo. Segundo os investigadores, ele baixou informações sobre o tempo antes de sua partida e também tirou selfies de si mesmo no navio, além de levar parentes da Síria a bordo.
O Ezadeen, um chamado navio fantasma, completou uma viagem semelhante. O navio de 74 metros de transporte de rebanhos, com um capitão sírio e oito tripulantes a bordo, partiu do porto cipriota de Famagusta em 10 de dezembro. Como o sistema de rastreamento a bordo foi desligado, o Ezadeen não transmitiu nenhum dado nos poucos dias que se seguiram. Especialistas em transporte marítimo suspeitam que o cargueiro esteve na Síria durante esse período. Em 22 de dezembro, o navio estava à deriva na costa norte de Chipre, ao sul de Mersin. Ele não transmitiu nenhum sinal por cinco dias –até 1º de janeiro, quando chegou à Itália com 359 passageiros a bordo.

'Eu estou fazendo um favor aos sírios'

Como a guarda costeira monitora principalmente o tráfego dos navios de carga mais a oeste, na direção da Grécia, os contrabandistas desviaram suas atividades para o leste.
Murdock espreme um limão sobre o peixe e serve um pouco mais de Raki. Ele se tornou mais falador. "Eu estou fazendo um favor aos sírios", ele diz. Novos refugiados estão entrando no país a cada dia e agora há simplesmente um número excessivo deles, até mesmo para a Turquia. As autoridades em Mersin não estão tentando seriamente deter as atividades de tráfico, ele diz. Na verdade, ele acrescenta, a polícia e a guarda costeira aceitam suborno por informação e para dar as costas.
Segundo Murdock, os navios de contrabando tem de 65 a 85 metros de comprimento e podem levar até 800 pessoas. Ou eles não têm licença ou são vendidos por uma ninharia por baixo dos panos. Ou são cargueiros com licença de propriedade de empresas de transporte marítimo que só existem no papel –empresas fantasmas para navios fantasmas. Não há sinal da Uni Marine Management, a empresa que supostamente é dona do Ezadeen, em Trípoli, Líbia, onde supostamente fica sediada. Ninguém ali ouviu falar da empresa.
De repente, o irmão de Murdock chega correndo ao restaurante em Karaduvar. Ele traz más notícias, ele diz. A guarda costeira tinha prendido uma quadrilha de tráfico que estava levando refugiados a bordo de um navio no porto desde o início da noite –à plena vista da aldeia pesqueira. Isso aparentemente foi descarado demais para as autoridades.

Aguardando pela viagem para a liberdade

"Meus homens ficam de olho no local por uma semana antes de um dos meus barcos partir de Karaduvar", diz Murdock. Os homens aos quais se refere são 10 aldeões que ficam sentados em seus carros à noite, bebendo cerveja. Se a polícia aparece, eles saem do carro e começam a brigar para distrair os policiais. Se tudo está tranquilo, os homens ligam para Murdock e dizem: "O tempo está bom. Você pode sair para pescar".
Então Murdock liga para o capitão do navio grande. Um dos líderes da quadrilha de tráfico geralmente fica em terra e simultaneamente envia um intermediário, conhecido como "Tutu". Tutu tem metade do dinheiro dos passageiros em seu bolso. Os refugiados o contatam assim que chegam ao grande navio, e apenas aí ele paga a Murdock e seu pessoal –cerca de US$ 1.000 a US$ 1.500 por cada refugiado.
Todo dia, Sherko aguarda pelo telefonema do baixinho, que por sua vez está aguardando pelo telefonema de intermediários como Murdock, que estão aguardando pelo telefonema do capitão.
No dia seguinte, Sherko se sente confiante o bastante para sair do hotel por duas horas. Ele caminha ao longo da orla marítima, vestindo um suéter púrpura e jeans, com o volume alto no iPhone em seu bolso. Ele está pensando no navio que viu há poucos dias –a embarcação que provavelmente já partiu com destino à Itália. O mar está bravo, mas Sherko já sabe disso, porque checou a altura das ondas com um aplicativo chamado SeaConditions. O baixinho, que também o utiliza, foi quem lhe contou sobre o aplicativo.
Sherko está inquieto. Ele acabou de brigar com um amigo que acha que ele não devia sair do hotel, porque pode perder a chamada. Mas Sherko diz que não quer esperar mais. Ele não lava seu jeans e suéter há um mês, preocupado que o baixinho possa ligar e suas roupas ainda estejam molhadas quando começar sua viagem para a liberdade.
Tradutor: George El Khouri Andolfato

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