sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Praça da Independência, em Kiev, recebe sem entusiasmo governo de 'suicidas políticos'
Piotr Smolar - Le Monde

Milhares de pessoas se reúnem na praça da Independência, em Kiev, para ouvir os nomes do novo governo Milhares de pessoas se reúnem na praça da Independência, em Kiev, para ouvir os nomes do novo governo

A Praça da Independência (Maidan) precisa viver seu luto, mas está difícil. Onde antes havia mortos e feridos, surgiram mesas de pingue-pongue e barracas de suvenires. A fumaça acima da praça não vem mais de pneus queimados, mas sim das cozinhas que alimentam os visitantes que chegam para prestar suas homenagens. Os combatentes, ou os que alegam ter sido, continuam andando de coletes à prova de balas e de balaclava. O heroísmo se transformou em folclore.
O sonho carrega uma traição: o despertar. A ilusão da democracia direta, de um controle radical dos políticos por parte do povo da Maidan, se desfez na quarta-feira (26). A multidão, novamente em peso, se reuniu às vésperas de uma votação da Rada (o Parlamento) sobre um governo de transição. Um governo dirigido por Arseni Yatseniuk, 39, número dois do partido Batkivchtchina ("Pátria"), de Yulia Timoshenko. Um homem muito apreciado pelas chancelarias ocidentais, ex-ministro da Economia e das Relações Exteriores, mas associado pela multidão a políticos oportunistas, adeptos de acordos de bastidores.
Se não houver um governo legítimo, não haverá bênção da Maidan, repetiam seguidamente os representantes da oposição, de volta ao poder após a queda do presidente Viktor Yanukovitch. Uma oposição que suscita uma desconfiança monumental na praça, escaldada pela "revolução laranja" de 2004. Ela não quer mais dar cheques em branco, como mostraram as pesadas vaias recebidas pelo presidente interino, Olexandre Turtchinov. No entanto, este anunciou que se retiraria dentro de um ano, quando a situação estivesse normalizada.
Talvez a jornalista militante da oposição Tetiana Tchornovol tenha encontrado as palavras mais certas: "Morrer, foi na semana passada. Agora precisamos trabalhar". Ela não foi muito aplaudida. No entanto, a composição do chamado futuro governo "técnico", negociada entre os partidos de oposição e as instâncias representativas da Maidan, pode ser considerada uma vitória da "revolução das ruas".
Sem esta última, teria sido impensável, por exemplo, que o deputado Andriy Parubyi, o comandante-chefe da Maidan, fosse cogitado para se tornar secretário do Conselho Nacional de Segurança e de Defesa.  Ou que Olga Bogomolets, coordenadora dos voluntários médicos, aclamada, pudesse ser designada como vice-premiê encarregada das questões humanitárias --uma oferta que ela declinou na manhã de quinta-feira. Ou que Dmytro Bulatov, um dos líderes da AutoMaidan, o movimento de automobilistas, se tornasse ministro da Juventude e dos Esportes. Sem falar da própria Tetiana Tchornovol. Jornalista do "Ukrayinska Pravda", espancada por desconhecidos na noite de 24 de dezembro de 2013, ela está prestes a ser nomeada chefe da Agência Anticorrupção.
Não se sabe quanto tempo durará a experiência política deles. Esse governo, que provavelmente será confirmado pela Rada, deverá permanecer assim até as eleições presidenciais do dia 25 de maio. Segundo Olexandre Turtchinov, estas deverão ser seguidas de eleições legislativas, de tão desprezado que é o Parlamento, centro de todo tipo de compactuações. Após a apresentação da equipe, Arseni Yatseniuk comemorou o fato de que jamais, na história moderna da Ucrânia, houve tantos ministros provenientes da sociedade civil. Esse governo de "suicidas políticos", para usar sua expressão, seria encarregado de enfrentar a questão da dívida. O resgate do país deve estar no centro de seu programa, apresentado na Rada na quinta-feira (27).
Na praça, o procedimento de confirmação popular não foi propriamente popular. Não houve nem mesmo uma votação a braços erguidos. Poderia ser diferente? As personalidades mais populares da Maidan discursaram primeiro, sem que ainda se conhecessem suas futuras pastas, para acalmar a multidão. Esta acabou descontente, uma vez que os candidatos não lhe apresentaram seu programa de ação. Mas quem pode estar à altura dos 82 mártires da Maidan? O imperativo moral da praça contrasta tanto com as práticas políticas medíocres das elites ucranianas dos últimos vinte anos, que ele traz desilusões de maneira quase certeira.
Arseni Yatseniuk escapou de uma salva de vaias ao se contentar em aparecer em cena. Na terça-feira, ele admitiu a dificuldade de conciliar "o profissionalismo e a representatividade da Maidan". Arseni Yatseniuk estabelecia o resgate das finanças públicas e a assinatura do acordo de associação e de livre-comércio com a União Europeia como horizontes. Desde o dia 1o de janeiro, a moeda nacional, o hryvnia, perdeu 18% de seu valor. O abismo está a dois passos, e a terapia de choque é inevitável, a exemplo do que aconteceu nos países do Leste Europeu depois de 1989. Nesse caso o apoio internacional também será decisivo. Mas será que os dirigentes ocidentais aceitarão considerar uma ajuda maciça ou uma anulação, pelo menos parcial, da dívida ucraniana, sem garantias sobre a seriedade das reformas?
Já o povo da Maidan não fala em Europa. Ele clama por vingança, e não ficará em paz enquanto os responsáveis pelas chacinas cometidas pelos policiais não forem identificados, presos e condenados. Os berkuts, as tropas de choque, foram dissolvidos na quarta-feira; a Aliança Democrática Ucraniana para as Reformas (Oudar) também quer pedir pelo fim dos Cobra, a unidade especial do Ministério do Interior. Mas esse é só o início da resposta esperada. Onde estão Andryi Kluiev, então chefe da administração presidencial, Viktor Pchonka, o ex-procurador geral, ou então Vitali Zakhartchenko, o ex-ministro do Interior? E, mais importante, onde está o presidente Viktor Yanukovitch, alvo de um mandado de prisão internacional, anunciado em toda parte, primeiro na Rússia e depois na Ucrânia?

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