quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Veteranos contratados para combater piratas sofrem com tédio
Nicholas Kulish, Ian Urbina e Mark Mazzetti - NYT
Samsung Indústrias Pesadas/AFP
Para evitar ataque de piratas, empresas contratam ex-militares como seguranças
Para evitar ataque de piratas, empresas contratam ex-militares como seguranças
Na noite antes de seus corpos serem encontrados sem vida dentro da cabine de um navio de carga, Jeffrey Reynolds e Mark Kennedy apreciaram a vida noturna local, frequentando bares turísticos chamados Le Rendez Vous e Pirates Arms.
Os dois, que foram membros dos Navy Seals (unidade de elite da Marinha americana) e trabalham como guardas de navios, visitaram dois cassinos, jogaram blackjack, beberam vodka e tequila com marinheiros da Nova Zelândia. Quando o segundo cassino fechou as portas, às 3 da manhã, as imagens de vigilância mostram que a dupla encontrou duas mulheres e partiu com elas por um corredor escuro.
Foi na cabine de Kennedy, mais de 12 horas depois, que um segurança do navio descobriu os dois homens no dia 18 de fevereiro. Reynolds estava caído sobre a cama e Kennedy estava deitado de costas no chão, com uma seringa na mão esquerda e pó de heroína marrom pela sala, de acordo com relatórios da polícia. Não ficou claro há quanto tempo eles haviam morrido.
O mistério maior é como os dois homens, com mais de 40 anos, que aguentaram o duro trabalho dos Seals - um deles sobreviveu a vários combates no Iraque e no Afeganistão - acabaram morrendo juntos nos alojamentos apertados do Maersk Alabama, um navio que ficou famoso por um sequestro pirata em 2009, retratado no filme indicado ao Oscar "Capitão Phillips".
Os veteranos, especialmente aqueles que retornam de zonas de guerra, têm demonstrado uma alta tendência ao uso de drogas e a outros comportamentos de risco. Entretanto, os amigos, familiares e conhecidos dos dois homens em particular disseram que pareciam ter se ajustado bem à vida civil, depois de anos nas forças armadas. Eles eram conhecidos tanto por seu entusiasmo pela vida quanto por seu físico em forma.
Ainda assim, o cotidiano dos guardas, com longos dias no mar protegendo os navios contra a pirataria - uma ameaça que tem diminuído significativamente nos últimos anos - foi um contraste gritante com suas vidas passadas em unidades militares de elite. Reynolds e Kennedy trabalhavam para a empresa de segurança privada chamada Trident Group, protegendo a tripulação do Maersk Alabama e sua carga contra ataques. Os dois homens haviam dito aos amigos que o verdadeiro inimigo no mar aberto era o tédio.
Pessoas que conheciam os homens expressaram choque diante da possibilidade dos dois terem usado heroína. Antigos tripulantes do Maersk disseram que o uso de drogas era proibido. Quando Jeremy White, um reservista da marinha e parceiro de treino de Kennedy - com músculos tão definidos e fortes que foi apelidado de "Capitão América" - foi questionado sobre o possível uso de drogas do amigo, ele disse: "Não há nenhuma maneira de desempenhar o papel deles e usar drogas".
Na segunda-feira (24/2), a polícia nesta ilha do Oceano Índico disse que as autópsias apontaram como causa oficial da morte dos dois homens a insuficiência respiratória e possível ataque cardíaco. "O relatório preliminar de investigação policial inclui suspeita de uso de drogas, como indicado pela presença de uma seringa e vestígios de heroína na cabine", disse Jean Toussaint, porta-voz da polícia.
Amostras de urina, conteúdo estomacal e sangue foram enviadas para um laboratório forense em Maurício, cerca de 1.600 quilômetros de distância, para posterior análise, disse Toussaint.
"A maldição do Maersk Alabama volta a atacar", dizia a manchete na primeira página de um jornal local, se referindo ao ataque por piratas durante o qual o capitão do navio foi mantido como refém em um bote salva-vidas. Desde que isso aconteceu, o Maersk Alabama já impediu dois ataques piratas, em parte porque o navio agora emprega guardas armados como Kennedy e Reynolds.
Alguns dos antigos membros da tripulação do navio processaram a empresa de navegação dinamarquesa Maersk, alegando que a segurança a bordo era insuficiente no momento do sequestro.
Uma coleção de mais de uma centena de pequenas ilhas, a República de Seychelles fica a cerca de 1.000 km a leste do Quênia. Com cerca de 91.000 habitantes, é famosa por suas praias exuberantes e atrai visitantes como o príncipe William e Kate Middleton em sua lua-de-mel.
Mas as ilhas também estão lutando contra uma das maiores incidências mundiais de uso de drogas injetáveis, com cerca de 2,3% da população, de acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas da ONU de 2013. A vida noturna em Victoria apresenta uma mistura de turistas de cruzeiros usando sandália de dedo e marinheiros tatuados, corpulentos, relaxando em bares com música eletrônica. Dos cassinos, ouvem-se os barulhos das máquinas de caça-níqueis, e as prostitutas se reúnem do lado de fora.
A recente repressão às drogas teve algumas consequências inesperadas. "O produto está se tornando mais difícil para se obter", disse Raymond St. Ange, consultor de segurança do ministro de assuntos internos de Seychelles. "O material disponível está sendo misturado com outras substâncias".
Liam Quinn, diretor-adjunto da Agência Nacional Antidrogas de Seychelles, disse que a pureza das amostras de heroína analisadas pela agência variou de 40% a 10%. As substâncias utilizadas para diluir a droga geralmente não são prejudiciais, acrescentou, embora o conteúdo dos coquetéis seja imprevisível. Vários moradores locais entrevistados que pediram para não ser identificados disseram que pesticidas perigosos tinham aparecido em algumas das misturas de drogas.
O Maersk Alabama e sua tripulação de 24 homens atracou em Seychelles ao meio-dia no dia 17 de fevereiro, a caminho de Salalah, em Omã. O navio estava programado para partir de Seychelles na noite seguinte, mas atrasou-se depois que os corpos foram encontrados.
O uso de drogas parecia ser "um incidente isolado", disse Kevin Speers, um porta-voz da Maersk Line. Os funcionários da empresa de segurança Trident e da Maersk são submetidos a exames obrigatórios de drogas e álcool. Speers disse que a Maersk estava revendo seus registros para determinar se os testes de drogas, verificação de antecedentes e requisitos de formação estavam atualizados.
Ex-tripulantes e funcionários da companhia disseram que a vida a bordo do Maersk Alabama era chata, mas não atípica para o ramo. O navio tem acesso à Internet, televisão, sala de ginástica e piscina.
"Nós jogávamos cartas, ligávamos para as pessoas ou ficávamos sozinhos", disse Clifford Lacon, que trabalhou no navio em 2009. "Nada de drogas".
Kennedy, 43, ingressou na Marinha em 1995 e quase imediatamente começou o programa de treinamento intensivo de dois anos para os Seals. Ele recebeu mais de uma dúzia de medalhas e condecorações antes de se aposentar em 2010, incluindo citações em reconhecimento ao seu serviço em Kosovo, Iraque e Afeganistão. Ele teve treinamento médico na Guarda Nacional da Louisiana entre 1988 e 1994.
Reynolds, 44, alistou-se em 1990 e serviu por 10 anos, mas nunca viu o combate. Ele recebeu medalhas por bom comportamento, passou três anos como instrutor em Camp Pendleton, na Califórnia, e chegou ao posto de terceiro contramestre antes de ser dispensado com honras em agosto de 2000.
Segundo os registros da Marinha, Reynolds passou a maior parte de sua carreira na Unidade de Guerra Especial da Costa Oeste, enquanto Kennedy ficou a maior parte na Unidade de Guerra Especial da Costa Leste.
White, amigo de Kennedy, descreveu-o como "um físico perfeito". Ele aproximou-se de Kennedy e de sua esposa, Julia, na época em que se exercitavam juntos em uma academia em Baton Rouge, Louisiana.
Brian Beckcom, advogado de Houston que representa alguns tripulantes do Maersk no sequestro de 2009 e foi procurado pela viúva de Kennedy, concordou. Kennedy tinha "muita formação médica", disse Beckcom, acrescentando que acreditava que Kennedy seria cauteloso em usar heroína no exterior devido aos riscos de contaminação ou overdose.
Numa rua sem saída tranquila em Fallbrook, Califórnia, não muito longe de Camp Pendleton, vizinhos e amigos Reynolds ficaram incrédulos diante das suspeitas de uso de drogas.
"Eles eram pessoas da igreja", disse Paul Bell, um vizinho, sobre Reynolds e sua ex-mulher, Jill. Monika Connelly, outra vizinha, acrescentou que, quando sua família fazia churrascos no bairro, os Reynolds nem tomavam bebidas alcoólicas.
O casal, cujo divórcio após 11 anos de casamento tornou-se definitivo em dezembro, tinha um filho de 11 anos de idade, Chase, a quem muitas vezes Reynolds levava para fazer trilhas de bicicleta e viagens de futebol. Reynolds muitas vezes era visto andando em sua Harley-Davidson pelo bairro com roupa de couro e capacete preto.
Craig Donor, 68, conhecido como Gunny, capitão do grupo de motociclistas Southern California Patriot Guard Riders, que fornece escolta de motocicletas para os restos mortais de soldados e veteranos, disse que Reynolds e seu pai, Charles, eram membros ativos do grupo. O pai de Reynolds entrou em contato com o grupo na semana passada, disse Donor, para pedir uma escolta em homenagem ao filho quando seu corpo voltar para a Califórnia.
Para Kennedy e Reynolds, a noite fatídica em Seychelles começou quando a tripulação foi para o Le Rendez Vous, um bar com tema de selva no centro da cidade, com vista para a torre do relógio de prata erguida em homenagem à Rainha Vitória.
Eles foram para outro bar e depois para um cassino, quando dois colegas da tripulação partiram de volta ao navio, às 23h. Continuando a folia, Kennedy e Reynolds foram para o Victoria International Casino, cujos funcionários se lembram que Reynolds jogou blackjack e Kennedy flertou com as funcionárias.
Eles descreveram os homens como joviais e contaram que os dois tiveram que sair em busca de um caixa eletrônico para pegar mais dinheiro, para mais rodadas de bebidas.
Robert Nanty, que trabalha na segurança do cassino, disse que Kennedy "contou que falava um pouco de crioulo", embora não a variedade local, e falou um pouco. "Ele estava conversando com todo mundo", disse Nanty.
Eles acabaram sendo escoltados para fora às 3 da manhã, quando o casino fechou. "Eu disse a eles: 'Olha, precisamos fechar'", contou Nanty. "Vocês têm que sair". Às 6 da manhã, segundo o relatório da polícia, eles voltaram para o navio.
Tradutor: Deborah Weinberg

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