sábado, 30 de janeiro de 2016

Sanders e Wall Street são os tormentos de Hillary na busca pela candidatura
Alain Frachon - Le Monde
Saul Loeb/AFP
No papel, ela é imbatível. Aos 68 anos de idade, Hillary Clinton é a mais bem posicionada para conquistar a candidatura democrata à eleição presidencial de novembro. Ela tem um currículo político impecável, um molho de chaves para a Casa Branca. Na França, seria o equivalente a ocupar um cargo de inspetora de finanças, passar por um mandato eletivo e por um posto importante no governo.
Ela é aquilo que os americanos chamam de "wonk", uma tecnocrata ávida por dossiês, imbatível primeira da classe. Mas essa "CDF" possui um senso político admirável.
A ex-senadora de Nova York e ex-secretária de Estado de Barack Obama, além de tudo isso, também passou oito anos na Casa Branca ao lado de Bill Clinton (1992-2000), um dos ex-presidentes mais populares entre o eleitorado democrata. Ela teve também um verdadeiro passado ativista, contra a guerra do Vietnã, pelo direito das mulheres e pela defesa da infância, contribuindo para seu perfil de vencedora.
Só que sua campanha vem patinando nas pradarias congeladas do Meio-Oeste (em Iowa) e afundando um pouco no esplendor nevado da Nova Inglaterra (em New Hampshire), dois Estados que nos dias 1º e 9 de fevereiro receberão as primeiras votações para as primárias.
No resto do país, Hillary permanece na pole position dos candidatos democratas, tendo por trás de si todo o "establishment" do partido, seu marido Bill e, discretamente, Barack Obama. Os maiores contribuidores democratas, tanto na indústria quanto nos serviços, a dotaram de um sólido cacife, e ela possui os milhões de dólares necessários para se manter até o final das primárias, na primavera.
Então o que tem emperrado a "máquina Hillary"? Um certo Bernie Sanders, senador do micro-Estado de Vermont, de 74 anos de idade. Os americanos têm isso de simpático: tanto na política quanto na imprensa, eles nem sempre cedem ao culto à juventude. Clinton tem razões para temer: em 2008, durante uma primeira tentativa de se tornar presidente, Obama a ultrapassou de longe em Iowa, e por fim a derrotou. Nos últimos dias Sanders, que se apresenta como "socialista" (tendência da Nova Inglaterra), tem subido rapidamente nas pesquisas, seguindo de perto a favorita em Iowa e em New Hampshire.
Mais importante ainda é o fato de que Sanders, inimigo dos mercados financeiros, tem encarnado entre os democratas um dos temas centrais da campanha: a revolta contra as elites. "Não estamos combatendo somente Wall Street, estamos combatendo as elites políticas", diz o senador de Vermont. É isso que proclamam também os dois bad boys que lideram a corrida pelas primárias republicanas, Donald Trump e Ted Cruz.
Os tempos são de protestos, de "raiva" contra as classes dirigentes, mas esta é expressa de maneiras diferentes. Cruz e Trump empregam todas as receitas da demagogia, atrelando às suas denúncias contra as elites a figura de um bode expiatório: os imigrantes. Bem diferente do Dom Quixote de Vermont, que com razão ataca o modo de financiamento das campanhas políticas, uma vez que as doações ilimitadas de empresas—lobbies poderosos como da indústria farmacêutica, Wall Street, petroleiras etc.—deixam a representação política de rabo preso.
O dinheiro corrompe a democracia americana, esbraveja Sanders, porta-voz informal do movimento de protestos Occupy Wall Street. O senador só aceita contribuições individuais, que não podem ultrapassar US$2.700 (quase R$11 mil). Já Trump, inesperado porta-bandeira do movimento de protesto Tea Party, critica os lobbies e se gaba de financiar sozinho sua campanha. Ambos têm aproveitado a crise de desconfiança que afeta as instituições políticas, com um recorde de impopularidade para o Congresso, que se encontra com somente 18% de aprovação.

Déficit de credibilidade

Essa eleição, segundo o "New York Times", tem sido "formada pelos temas da desigualdade econômica e da redução contínua da renda da classe média", assuntos nos quais Hillary pode não ter muita credibilidade, justa ou injustamente.
Embora seja mulher de um marido rico, ela não deixa de praticar esse esporte tão lucrativo que são as "palestras" cobradas a um alto preço, pago com prazer por firmas de Wall Street, segundo o "New York Times". Por três "speeches" em três Estados diferentes (mas provavelmente com o mesmo conteúdo), ela embolsou em poucas horas, em 2015, US$ 675 mil do banco Goldman Sachs, encarnação dos vícios do mercado financeiro. Para se ter uma ideia, a renda anual média em Iowa é de US$ 52 mil por família.
Desde que eles deixaram a Casa Branca em 2000, os Clinton amealharam uma fortuna de US$ 125 milhões, a maior parte no circuito das "palestras". Uma parte vai para Fundação Clinton, uma admirável máquina de caridade.
Mas será que um país, um príncipe saudita, um grupo farmacêutico doariam à Fundação por motivos puramente humanitários? Ou seria porque Bill consegue abrir todas as portas, tanto em Washington quanto em outros lugares? Ou porque Hillary está à frente do departamento de Estado e pode subir ainda mais? Justa ou injustamente, não haveria ali uma mistura de gêneros ou até um conflito de interesses?
Assim como Trump e Sanders, Hillary jura que ela vai regulamentar Wall Street e ajustar um sistema fiscal que favorece demais os ricos, propondo um imposto especial de 5% para os contribuintes que ganhem mais de US$5 milhões por ano. O senador de Vermont se mostra cético, duvidando da total independência de sua ex-colega de Nova York em relação a Wall Street. Com um clima tão anti-elitista como o de agora, o ataque de Sanders tem surtido efeito, ainda que Hillary jure que ela não é refém de ninguém. É verdade que seu caráter é um de seus pontos fortes.

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