quarta-feira, 30 de março de 2016

‘New York Times’ acusa brasileiros de chutar cachorro vivo
Notícia falsa do ano passado mostra nível da cobertura da crise em veículos estrangeiros
Vilma Gryzinski  - VEJA
Cadê o cão que não está aqui: questão de opiniões?
Cadê o cão que não está aqui: questão de opiniões?
O clichê mais banal sobre jornalismo envolve cachorros mordendo homens e vice-versa. A partir de agora, deve incluir pessoas inexistentes chutando cachorros imaginários, segundo um truquezinho de Facebook divulgado há exatamente um ano e repetido recentemente, com a foto de um meigo border collie de bandana vermelha, chutado por malvados cidadãos brasileiros que não gostam de caninos usando as cores do partido do governo.
Os brucutus intolerantes e inexistentes foram evocados num op-ed, os artigos com diferentes opinões, geralmente bem pouco diferentes,  que o jornal New York Times publica, escritos por colaboradores ou convidados, na página de editoriais. “Batendo panelas e chutando cachorros” é o título do artigo, escrito por uma colaboradora brasileira. “Um cachorro foi atacado na semana passada, no Rio de Janeiro, por usar uma bandana vermelha”, diz o artigo, no qual pessoas que participam de manifestações contra a atual presidente são comparados a “torcedores histéricos”.
Brasil, futebol, torcedores histéricos, entenderam a conexão?
Corajosamente, a autora também explica a “polarização” – eta palavra abusada para apresentar ideias feitas e falsas – entre mortadelas e coxinhas. Mas alguma coisa se perde na tradução.
Mortadela é apresentada como uma salsicha considerada comida de pobre. Não precisava tanto. Mortadella,  no original em italiano, também é usada em inglês. Mas o produto alimentício que passaria a ideia de imediato é chamado, também por influência da imigração italiana, de bologna.  A designação  desse salsichão, muito usado em sanduíches para crianças,  acabou dando origem à palavra baloney . Significa besteira, mentira, sanduíche de ar.
Entremos agora no campo perigoso da coxinha. Fica meio sem graça traduzir como fried chicken  dumpling . Vai ver que bolinho de frango frito não passa direito a ideia de perigosos e intolerantes manifestantes, que ainda por cima batem panelas, um ato de protesto não muito radical. Deve ser por isso que precisam se transformar em chutadores de cachorros vivos e inexistentes.
O risco, diante da situação atual da presidente e do seu antecessor, descrito como “distinto líder” do partido do governo, como se pertencesse à dinastia norte-coreana dos Kim, é que logo virem chutadores de cachorros metaforicamente mortos.
Dá até pena do correspondente Simon Romero, que procura fazer boas reportagens usando elementos do mundo dos fatos. De repente, aparece no site do New York Times, algo com o título “Um flagrante da rede de escândalos no Brasil”.
Nesse mundo paralelo, “autoridades da polícia” dizem que encontraram evidências de corrupção envolvendo a Petrobras. Policia má, entenderam?,  não obstante existam, de sobra, casos de condenados com culpa assinada,  penas lavradas e temporadas no sistema prisional.
Ah, sim. A economia vai mal por causa do desaquecimento mundial provocado pela queda do preço do petróleo e autoridades estão desfazendo gradualmente as políticas através das quais bancos estatais e empresas públicas promoviam o crescimento.
Assina a obra Christine Hauser, que gosta de sua atividade atual por causa da variedade de temas. “Um dia é o tempo; outro, o Iraque; outro, a economia”, diz. Pela amostra do que escreveu sobre o Brasil, é melhor não sair de casa sem guarda-chuva baseando-se no que ela diz. E nem comprar ações. O Iraque, onde ela foi repórter usando um pano na cabeça, sem precisar, não pode ficar em situação pior do está.
A mesma escola alucinógena de jornalismo foi usada em reportagens sobre a entrevista de ontem do ex-presidente, convocada, legitimamente, para ser usada tendo em vista seus objetivos políticos. Jornalistas que se deixam usar é que fazem papel de bobos. Ou disfarçam, como na reportagem da agência Reuters, replicada por veículos mal informados ou mal estacionados, sabe-se lá. A agência resolveu focar a entrevista no “apelo para acabar com a austeridade e retornar ao crescimento”. Não no desabamento iminente do governo ou no compreensível medo do ex-presidente de ir para a cadeia.
Talvez para proteger o “distinto líder” de si  mesmo, nenhuma menção ao fato de que ele declarou não querer “ser um Rasputin” no governo ora em desmanche. Rasputin, lembremos, foi o auto-proclamado místico russo que ganhou enorme influência sobre o czar Nicolau através de sua mulher, a czarina Alexandra, desesperada com a hemofilia do filho e único herdeiro do trono imperial. Para finalmente acabar com Rasputin e tentar salvar o regime, já perdido, um grupo de conspiradores envenenou-o, atirou nele em três ocasiões diferentes,a certou-lhe uma sapatada no olho, embrulhou o corpo e jogou no rio.
Quem quer se comparado com Rasputin? Aliás, para resolver o problema de saúde do menininho, Lênin mandou matar a família inteira.
De resto, as grandes publicações continuam indiferentes ao que acontece no Brasil, mencionado em geral nos nichos segmentados. A revista Economist desinteressou-se do assunto depois de dar um editorial   do tipo too little, too late, too me too, como o do New York Times, apoiando o afastamento da presidente.
Agravante: a revista inventa que “sempre” apoiou o impeachment desde que baseado nos princípios constitucionais. E continua incapaz de entender o efeito político das grandes manifestações a favor do impeachment, que chama de brasileiros fazendo  “perambulações de domingo à tarde”.
O Daily Telegraph, um dos melhores jornais do mundo atualmente, também já caiu fora. Fez bem. A melhor reportagem que publicou este ano sobre o Brasil  é intitulada  “Macaco empunha faca e persegue homens no Brasil”. Infelizmente, o divertido símio da Paraíba, que parecia ter tomado umas e outras, é identificado como um mico. Na verdade, era um macaco prego.
Melhor voltar para os cachorros.

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