Duas narrativas sobre a Previdência
Reformas previdenciárias são impopulares em
todos os países, pois atingem expectativas universais de direitos
pecuniários. Mesmo assim, elas avançaram
Demétrio Magnoli - O Globo
Os números parecem avassaladores. A pesquisa Datafolha, publicada pela
“Folha de S.Paulo” sobre a reforma previdenciária, registra reprovação
de 71%, contra aprovação de escassos 23%. À primeira vista, a reforma é
um fracasso irremediável na arena de batalha da opinião popular.
Contudo, a mesma pesquisa oferece os indícios de que, no fundo, o
desastre reflete menos a natureza da reforma que a narrativa política na
qual está envolvida.
O governo apostou suas fichas em campanhas de propaganda destinadas a
esclarecer os mecanismos do crescente, insustentável, déficit
previdenciário. Disse-nos, insistentemente, que as regras atuais
chocam-se com a dinâmica demográfica de envelhecimento da população.
Explicou-nos, pedagogicamente, que os tempos de contribuição e as
idades-limite de aposentadoria, definidos há décadas, refletem as
expectativas de vida do passado. Mostrou-nos, à base de estatísticas,
que o aumento da participação de idosos na população exige a atualização
das regras, sob pena de colapso do sistema de financiamento
previdenciário. Nada disso, porém, convenceu 71% dos brasileiros —
inclusive, especialmente, os que têm curso superior, grupo no qual a
rejeição à reforma atinge 76%. Como interpretar isso?
Reformas previdenciárias são impopulares em todos os países, pois
atingem expectativas universais de direitos pecuniários. Mesmo assim,
elas avançaram em diversos países europeus, obtendo níveis razoáveis de
legitimação política. Na Alemanha, a significativa elevação da idade
mínima de aposentadoria decorreu de amplos acordos costurados entre os
dois partidos tradicionais (a social-democracia e a democracia-cristã) e
as centrais sindicais. O caso alemão é singular: um espelho da notável
coesão política de uma sociedade que se reconstruiu a partir das
experiências das sucessivas tragédias nacionais provocadas pelo nazismo e
pelo comunismo. Mas o impulso reformista manifesta-se, hoje, também na
França, um bastião da política corporativa, na forma do surpreendente
apoio popular à candidatura de Emmanuel Macron, que promete mexer em
sacrossantos direitos trabalhistas e previdenciários. Por que, então,
nada similar acontece no Brasil?
Nossa “história profunda” sugere fragmentos de respostas. No país de
colonos empenhados em “fazer a América”, o interesse privado suplanta o
interesse público. No país de colonos modernizado pelo varguismo, o
Estado aparece como fonte universal de oferta de direitos e a elite
política extrai sua legitimidade da prerrogativa de assegurar a
distribuição de rendas. Por aqui, desprezamos bens públicos de usufruto
geral (escolas, hospitais, redes de saneamento, transportes urbanos,
parques, museus, bibliotecas), mas agarramo-nos a direitos pecuniários
de usufruto individual (aposentadorias, pensões, bolsas, cotas, cestas
básicas, passes livres, meias-entradas). FHC, Lula e Dilma esbarraram em
muralhas de rejeição, quando ousaram ensaiar reformas previdenciárias.
Recusamo-nos terminalmente, portanto, a entender as contas, a acatar as
realidades básicas da aritmética?
Os sindicalistas, em particular as entidades do funcionalismo,
confrontam a campanha do governo com a tese de que não existe um déficit
previdenciário. A aritmética política deles opera por oníricas adições
(receitas previdenciárias puramente imaginárias) e espertas subtrações
(despesas previdenciárias magicamente descartadas). Há quem simule
acreditar nisso — mas 76% dos cidadãos com diploma universitário? As
informações do Datafolha insinuam algo diferente: da pesquisa, extrai-se
a hipótese de que o erro se encontra na narrativa governista. No lugar
da ênfase na lógica atuarial (ou seja, na sustentabilidade das contas
previdenciárias), o esforço de persuasão deveria se concentrar nas
teclas do privilégio e da igualdade.
Nos gráficos do Datafolha, nítidas maiorias rejeitam as regras
diferenciadas para militares (58%), policiais (55%) e professores (54%).
Nosso sistema previdenciário está crivado pelas exceções corporativas e
contaminado pelo privilégio, beneficiando as castas mais abastadas de
servidores públicos. A marca da desigualdade, o signo do favorecimento
esvaziam-no de legitimidade política. Sob esse pano de fundo, a reforma
projetada pelo governo aparece (justa ou injustamente) como uma
conspiração devotada a cobrar das pessoas comuns as dívidas contraídas
por um edifício de injustiças. Diante de outra narrativa, o Brasil
poderia ser uma Alemanha — ou, ao menos, uma França.
A narrativa, porém, não é uma escolha livre, mas um fruto
incontornável das circunstâncias políticas. Um governo eleito sob uma
plataforma reformista teria a oportunidade de formular um projeto
previdenciário baseado nos princípios da sustentabilidade financeira e
da igualdade de direitos. Nessa hipótese, o discurso da reforma
confrontaria as resistências sindicais alvejando os privilégios e
exceções corporativas. O país não pertence a juízes, procuradores,
homens em armas ou professores. Os privilégios são pagos às custas da
ruína da educação, da saúde, dos transportes e dos espaços públicos
urbanos. A natureza do governo Temer, porém, coloca tal narrativa fora
de seu alcance.
Temer não nasceu do voto popular, mas do impeachment da presidente de
quem era sócio político. Na falta de legitimidade eleitoral, seu
governo depende, exclusivamente, de uma coalizão de ocasião, constituída
no ambiente de desmoralização generalizada da elite política. Seu
projeto de reforma previdenciária, eivado de exceções, expressa os
temores de uma base parlamentar sitiada pelas pressões corporativas. A
narrativa que lhe resta está calçada apenas no fraco poder persuasivo da
aritmética.
O governo impopular usará sua impopularidade para salvar o Brasil de
si mesmo, dizem, esperançosos, uns poucos arautos da reforma. É um
teorema curioso, que fala mal da democracia.
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