Carnes vivas
Casais devotam aos filhos a mesma atenção obsessiva que um pesquisador dedica aos seus ratinhos de laboratório
JOÃO PEREIRA COUTINHO - FSP
Tive
uma infância de príncipe. Passei longas horas na rua, sem supervisão
parental, a fazer coisas que não lembram ao diabo. Isso na cidade.
No
campo, o cardápio era melhor: torturava bichos, primos, vizinhos. Parti
o braço (uma vez) e o pulso (idem). Tudo porque teimava em subir nas
árvores, como um Tarzan de nove anos.
E, por falar em árvores,
cheguei a construir uma casa rudimentar no cimo de uma oliveira --o
supremo cliché, tirado de um romance de Mark Twain-- que aguentou apenas
duas horas. Findas as duas horas, já eu estava no chão, com os joelhos
em carne viva.
Às vezes pergunto o que aconteceria aos meus pais
se o pequeno selvagem que eu fui pudesse reaparecer agora, neste 2014,
sem freio nem controle. Provavelmente, seria exibido em uma jaula, como
um King Kong pré-púbere, só para horrorizar a burguesia.
"Minhas senhoras e meus senhores, vejam com os próprios olhos, uma criança que gosta de brincar!"
Imagino
a plateia, horrorizada, tapando os olhos dos filhos --ou, melhor ainda,
ligando os tablets e anestesiando-os com a dose apropriada de pixels.
E
a minha mãe, a única sobrevivente da minha biografia juvenil, estaria
obviamente presa. Exagero? Não creio. Conta a "Economist" dessa semana
que Debra Harrell, da Carolina do Sul, foi detida por deixar a filha de
nove anos brincar no parque sem vigilância apurada.
Engraçado. Na
década de 1950, uma criança tinha cinco vezes mais possibilidades de
morrer precocemente (por doença, acidente etc.) do que uma criança do
século 21. Mas os pais da "baby-boom generation" deixavam as suas
crianças à solta, talvez por entenderem que uma criança é uma criança.
Esses pais não eram, como diz a revista, "pais-helicóptero".
Expressão
feliz. Conheço vários: casais que devotam aos filhos a mesma atenção
obsessiva que um pesquisador dedica aos seus ratinhos de laboratório.
Gostam de saber onde estão os filhos. O que fazem. Em casa de quem. E
com quem. Como os helicópteros, estão constantemente a planar sobre a
existência dos petizes.
E quando finalmente descem à terra, é a
desgraça: correm com eles para aulas de música, caratê, natação,
matemática, talvez física quântica. No regresso à casa, é ver esses
pequenos escravos arrumados a um canto, mortificados e exaustos, antes
de se recolherem aos quartos e as luzes serem apagadas como nos
presídios.
Não sei que tipo de crianças os "pais-helicóptero"
estão a produzir. Deixo essas matérias para os especialistas. E,
confesso, a minha selvageria juvenil não é exemplo para ninguém: também
eu já estou corrompido pelos ares do tempo e um filho meu jamais subiria
a uma árvore sem eu chamar de imediato a associação de bombeiros para o
tirar de lá.
Digo apenas que a profusão de "pais-helicóptero" é
uma brutal amputação da infância e da adolescência. Para além de
corromper a relação entre pais e filhos.
Sobre a amputação, não
sei que adulto eu seria se nesses primeiros anos não houvesse a sensação
de liberdade, mas também de percepção do risco, que me acompanhava
todos os dias. Apesar dos ossos que quebrei, dores foram compensadas
pela confiança que ganhei e pela intuição de que o mundo não é uma
ameaça constante, povoado por sequestradores, pedófilos ou
extraterrestres.
Mas os "pais-helicóptero" corrompem a relação
essencial entre eles e os filhos. Anos atrás, o filósofo Michael Sandel
escreveu um magistral ensaio contra o uso da engenheria genética para
produzir descendências perfeitas.
O ensaio intitula-se "The Case
Against Perfection". Dizia Sandel que se os pais pudessem manipular os
fetos para terem superfilhos, estaria quebrada a qualidade essencial da
parentalidade: o fato de amarmos os filhos incondicionalmente. Sejam ou
não perfeitos. Os filhos são "dádivas", escrevia Sandel; não são um
produto que obedece aos nossos caprichos.
Igual raciocínio é
aplicável aos "pais-helicóptero": é natural desejar o melhor para os
filhos. E um professor particular de matemática nunca fez mal a ninguém.
Não
é natural ter com os filhos a mesma relação que existe entre um
treinador e o seu atleta, como se a vida --acadêmica, pessoal,
emocional-- fosse uma mini-Olimpíada permanente.
Na minha infância, as únicas medalhas que colecionei são as cicatrizes que trago no corpo. Não as troco por nada.
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