Considerações sobre a submissão das pessoas aos desmandos do estado
Robert Higgs - IMB
Como
corretamente diz o ditado, a intimidade pode gerar desprezo, mas também pode
gerar algum tipo de sonolência ou tédio.
Aquelas
pessoas que nunca conheceram outro arranjo fora daquele em que vivem — mesmo
que viva em um arranjo extraordinariamente problemático — tendem a não
perceber nenhuma anomalia ao seu redor.
No mínimo, são incapazes de relacionar causa e consequência. É como se fossem zumbis que caminham por aí
indiferentes às coisas ao seu redor.
Essa
é exatamente a postura das pessoas de hoje em relação ao estado.
Elas
sempre conheceram o estado como ele é, e o veem como um fato consumado, como
algo natural. Elas encaram o estado como
encaram o tempo: haja chuva ou sol, tempestade com raios e trovões ou uma
agradável brisa de primavera, ele sempre se manifesta, e não há nada que você
possa fazer contra. Trata-se de um
aspecto da própria natureza. Mesmo
quando ele se mostra destrutivo, sua destruição é vista como algo semelhante a
"atos de Deus".
Essa
nossa postura conformista em relação ao estado ocorre não porque tal tipo de
comportamento esteja predisposto em nossos genes, mas sim porque nossas
condições de vida e nosso longo histórico de aceitação a este arranjo nos
predispõem a encará-lo desta maneira resignada.
Já aquelas pessoas que chegaram a viver sob outros arranjos reagiram a
tentativas de criação de um estado de maneiras bem distintas. Foi somente quando populações humanas
desenvolveram a agricultura e passaram a se estabelecer de em localidades
fixas, que a humanidade se tornou mais condescendente com a dominação estatal.
Durante
aquele período de tempo vastamente mais longo em que a humanidade era nômade e vivia
em pequenos bandos que praticavam a caça e a coleta, o
estado era um arranjo impossível: as pessoas não tinham praticamente nenhuma
espécie de riqueza não-perecível que podia ser espoliada pelo estado, e se alguém
tentasse impor algo semelhante a um domínio estatal sobre um bando, seus
membros simplesmente sairiam daquela localidade, colocando o máximo de
distância possível entre si próprios e aqueles exploradores, evitando assim as
depredações desta tentativa de criação de um estado. Para ver relatos históricos sobre isso, leia
o livro The Art
of Not Being Governed: An Anarchist History of Upland Southeast Asia,
de James C. Scott.
No
entanto, ao longo dos últimos 5.000-10.000 anos, para praticamente todos os
seres humanos do mundo, o estado sempre existiu e sempre esteve presente com
suas depredações e abusos dos direitos humanos.
Seu poder de dominar, subjugar e espoliar seus súditos é cuidadosamente
sustentado pela sua destreza em explorar os medos humanos, dentre eles o medo
dos indivíduos em relação ao próprio estado e a outras ameaças à vida e à
integridade, contra as quais o estado jura que irá nos proteger. (Nessa postura, o estado em nada se difere
daquelas gangues de bairro que extorquem pessoas em troca de "proteção".)
Em
todo caso, praticamente todos os indivíduos se tornaram totalmente incapazes de
sequer imaginar como seria a vida sem um estado.
Já
aqueles poucos que se mostraram capazes de se libertar dessa condição hipnótica
e vergonhosamente submissa em relação ao estado se fazem duas perguntas:
1)
Quem essas pessoas — a saber, os cabeças do estado, sua guarda pretoriana,
seus bajuladores e seus megaempresários
protegidos no setor privado — pensam que são para nos tratar dessa
maneira?
2)
Por que praticamente todos nós aceitamos receber esse ultrajante tratamento do
estado?
Essas
duas simples perguntas podem facilmente se tornar — e de fato formam — o
cerne de vários livros, artigos e manifestos.
Embora algo semelhante a um consenso jamais tenha ocorrido, parece ser
pouco controverso dizer que as respostas para a primeira pergunta têm muito a
ver com o amplo predomínio de pessoas arrogantes e mal intencionadas que
usufruem uma vantagem comparativa em coagir e confundir suas vítimas. Tendo de escolher entre enriquecer por meios
econômicos (pela produção e pelas trocas voluntárias) ou por meios políticos (roubo
e extorsão), os membros das classes dominantes sempre optaram decisivamente
pela segunda alternativa.
O
papa Gregório VII (1071-85), o líder da momentosa Revolução Papal que se
iniciou durante seu papado e continuou durante os cinquenta anos seguintes
(durando ainda mais na Inglaterra), não mediu palavras quando escreveu (como
citado pelo estudioso Harold
Berman): "Reis e príncipes obtiveram seus poderes de homens ignorantes de
Deus, e se elevaram acima de seus conterrâneos por meio da soberba, da
espoliação, da deslealdade e do homicídio — em suma, por todos os tipos de
crime —, sempre instigados pelo Demônio, o príncipe deste mundo. São homens cegados pela ganância e
insuportáveis em sua insolência".
É
sim possível que alguns líderes políticos sinceramente acreditem possuir uma
justificativa virtuosa para impor sua dominação sobre seus conterrâneos — e
mais do que nunca nos dias de hoje, em que políticos populistas juram que uma
vitória eleitoral equivale a uma consagração divina —, mas tal autoengano não
altera em absolutamente nada a realidade da situação.
Quanto
ao motivo de aceitarmos nos submeter aos ultrajes do estado, as respostas mais
persuasivas têm a ver com o medo que temos do estado (em conjunto com o temor
da responsabilidade própria que muitos sentem).
Há aquela apreensão de ser o desafiante solitário, que no momento
decisivo não contará com o apoio e a solidariedade das outras vítimas, as quais
acabarão se omitindo e não juntarão forças.
E talvez ainda mais importante, há aquela "hipnose" ideológica (como explicada
por Leon Tolstoi) que impede que a maioria das pessoas seja capaz de
imaginar a vida sem o estado ou seja incapaz de entender que o estado reivindicar
imunidade ao mesmos códigos morais que vinculam todos os outros seres humanos é
uma impostura absurda.
Se
um indivíduo comum não pode moralmente roubar, espoliar, sequestrar,
fraudar ou matar, os
indivíduos que compõem o estado também têm de estar sujeitos a essas
mesmas
proibições. Igualmente, indivíduos
comuns não podem delegar ao estado as tarefas de roubar, espoliar,
sequestrar, fraudar ou matar simplesmente
porque eles não têm tais diretos; portanto, eles não podem ser
terceirizados. (Um simples lobby de poderosos empresários pedindo ao
estado mais protecionismo já configura uma intolerável terceirização da
espoliação.)
Assim
como Tolstoi, vários escritores e pensadores reconheceram que as classes
dominantes se esforçam incansavelmente para incutir em suas vítimas uma
ideologia que santifique o estado e suas ações criminosas. Sob esse prisma, é inegável que,
historicamente, vários estados foram extremamente bem-sucedidos nessa
empreitada. Sob o regime nazista, vários
cidadãos
alemães pensavam ser livres, assim como vários cidadãos das democracias
ocidentais de hoje também pensam ser livres.
A capacidade de uma ideologia cegar pessoas e deixá-las propensas à Síndrome de Estocolmo
parece não ter limites, embora um regime como o da URSS, que mantinha as
pessoas na persistente pobreza, pode descobrir que suas tentativas de produzir
encanto ideológico em suas vítimas irá, ao final, gerar retornos cada vez mais
decrescentes.
Portanto,
uma astuta — e em contínua mudança — combinação de força arrogante e fraude
insolente pode ser vista como sendo o principal ingrediente utilizado pelo
estado em seus multifacetados esforços para induzir sonolência em suas
vítimas. É claro que uma certa dose de
cooptação acrescenta um tempero especial à mistura, de modo que todos os
estados se esforçam para presentear suas vítimas com um pedaço do pão que ele
próprio roubou delas. Em troca desta
graciosa benevolência, as vítimas se tornam profundamente agradecidas.
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