O som ao redor
LUIZ WERNECK VIANNA - O Estado de S.Paulo
Há os céticos que gostam de qualificar, com seu gosto amargo
pela ironia, a vanidade dos esforços para mudar o mundo porque ele
mudaria sozinho. É verdade que as suas crenças não se encontram de todo
desamparadas pela teoria social, a qual, desde sua fundação, se dedica a
estudos de sistemas que, após sua institucionalização, passam a operar a
partir de uma lógica própria, alterando o ambiente em que estão
inscritos. Pierre Bourdieu, que procurou desenvolver em sua obra a
tradição da sociologia clássica, sustenta que "uma institucionalização
exitosa se esquece e se faz esquecer" das condições que presidiram seu
nascimento, naturalizando-se (Sobre o Estado, Companhia das Letras,
2014).
Mas a teoria social não dá voz apenas às estruturas, como também ao
ator. Em certos registros históricos, sobretudo a este. Anos de
supremacia na teoria social dos paradigmas dominantes na economia, em
particular dos de extração neoliberal, com sua aposta em mecanismos
automáticos de autorregulação e na sua crença de que o mercado, deixado
livre de constrangimentos políticos, nos reserva um "happy end", têm
feito com que se esqueçam as velhas lições de que o mundo, se entregue a
si mesmo, embora sempre mude, os resultados imprevistos desse processo
podem ser danosos a todos.
A grande crise financeira de 2008 subtraiu força desse argumento,
decerto que ainda parcialmente, pois continua sustentado por muitos na
academia e fora dela, mas é inegável que o processo de globalização em
curso já conhece a ação reguladora de instâncias jurídico-políticas,
entre as quais, muito especialmente, as institucionalizadas nos
organismos internacionais. No terreno da formação de uma opinião pública
internacional em favor de uma ordem cosmopolita não se pode deixar de
mencionar a ação do papa Francisco e a de Jürgen Habermas, este papa
laico da democracia contemporânea, nem a bibliografia dedicada ao
processo de formação de um direito mundial, da que é exemplar a obra de
Mireille Delmas-Marty, como em Pour um Droit Commun (Paris, Éditions du
Seuil, 1994) e Trois Défis pour un Droit Mondial (da mesma editora,
1998), entre outros trabalhos relevantes dedicados ao tema.
Os atentados terroristas, praticados por sectários que dizem agir em
nome do Islã, contra os jornalistas do Charlie Hebdo e os frequentadores
de um supermercado especializado no comércio de produtos destinados à
comunidade judaica de Paris, em reação à publicação de charges de humor
sobre a figura do profeta Maomé, pareceram trazer de volta os tempos
sombrios do 11 de setembro de 2001, data das ações do terror contra as
chamadas torres gêmeas. À época, o funesto episódio foi interpretado por
muitos como a confirmação de um diagnóstico, até então de baixa
aceitação, sobre a existência de uma "guerra de civilizações" entre o
Ocidente e o Oriente. A tarefa civilizatória do Ocidente deveria
empenhar-se em impor a sua supremacia, até mesmo por meios militares,
convertendo o segundo aos seus valores e instituições, política que
inspirou as invasões por forças da Otan no Afeganistão e no Iraque, com
os resultados desastrosos, hoje, à vista de todos.
A reação aos atentados do 7 de janeiro em Paris, contudo, vem tomando
outra direção. A chamada globalização mostrou sua face benigna com as
passeatas multitudinárias que ocuparam as ruas de uma boa parte do
mundo, especialmente com a impressionante demonstração de Paris, à testa
da qual marcharam expressivas lideranças mundiais, políticas e
religiosas, em nome das liberdades de expressão e de culto religioso. O
que era um devaneio da literatura ganhou ali materialidade: há, em
embrião, uma sociedade civil mundial dotada de voz capaz de se fazer
ouvir e que guarda na memória, como se viu, o que havia de universal na
Revolução Francesa.
Na esteira daquelas grandiosas manifestações, dirigentes da União
Europeia já se empenham em esforços comuns com países árabes de combate
ao terrorismo, e se fortalecem as lideranças democráticas, como a de
François Hollande na França, que se opõem à maré montante da xenofobia e
procuram favorecer tanto a inclusão social da população dos imigrantes e
seus descendentes como o reconhecimento de suas identidades culturais -
há poucos dias, o primeiro-ministro Manuel Valls denunciou em
manifestação pública a situação de apartheid em que, no seu país, vivem
as populações de origem árabe - sem as quais a concórdia não tem como se
instalar. Bons sinais ignorados pelo ceticismo falsamente elegante de
sempre.
Paradoxalmente, por obra da política, os atentados de Paris, longe de
robustecerem a extrema direita na Europa, tendência percebida por tantos
como inexorável, podem levar a resultado oposto. Esse é um jogo ainda a
ser jogado, mas a lucidez com que lideranças democráticas têm
movimentado suas peças demonstra que a política, essa região do ator,
quando intervém criativamente no mundo, pode romper com lógicas que
pareciam ter-se naturalizado.
Também nos EUA a política tem rompido com lógicas tidas como férreas,
como nas tratativas, ora em curso, sobre o restabelecimento das relações
diplomáticas com Cuba e sobre a suspensão do embargo econômico que vem
impedindo esse país de se desenvolver e modernizar seu sistema produtivo
em benefício da sua população. Não se pode deixar de registrar a
iniciativa do presidente Barack Obama de fixar em sua agenda política a
taxação das grandes fortunas no sentido de favorecer políticas públicas
igualitárias, legitimando, ao seu modo, as propostas de Thomas Piketty
sobre a reforma do capitalismo, ainda ignoradas, por sinal, pelo nosso
debate político.
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