Jean-François Mignot e Céline Goffette - Le Monde
De quem o jornal satírico "Charlie Hebdo" zombava antes que dois terroristas islamitas assassinassem cinco cartunistas e seis outras pessoas presentes na reunião da redação do dia 7 de janeiro? Será verdade que esse jornal tinha uma "obsessão" com muçulmanos, como pode ter sido dito após os atentados, inclusive em um artigo do "Le Monde" de 15 de janeiro de 2015, que teve a contribuição de vários pesquisadores?
Para dar uma resposta argumentada para essa pergunta, nós analisamos 523 capas do jornal, de janeiro de 2005 (número 655) até 7 de janeiro de 2015 (número 1177). Embora as capas do "Charlie Hebdo" não resumam sozinhas o jornal, elas são sua vitrine, que mesmo os não-leitores podem ver nas bancas.
O pequeno número de assinantes que o "Charlie Hebdo" tinha antes dos assassinatos permite supor que é com base em suas capas que o jornal foi acusado de islamofobia. Dessa análise, surgem várias conclusões.
Quatro grandes temas emergem das capas do "Charlie Hebdo": política, personalidades midiáticas do esporte e do entretenimento, acontecimentos econômicos e sociais, e religião.
Das 523 capas publicadas ao longo da última década, quase dois terços (336) teriam a política como tema. Em seguida, vêm temas econômicos e sociais (85 capas), depois as personalidades midiáticas do esporte e do entretenimento (42). A religião é tema de somente 7% das capas (38). Por fim, 22 capas tratam de vários temas ao mesmo tempo: política e mídia (número 919), mídia e religião (número 928), religião e política (número 932), religião e questões sociais (número 917) etc.
Dentro da temática política, pouco mais da metade das capas trazem personalidades da direita (Nicolas Sarkzoy, em sua maioria); quase um quarto delas é sobre personalidades de esquerda; 7% são da extrema direita; e 9%, sobre personalidades políticas internacionais (e 9% sobre vários alvos ao mesmo tempo).
Entre as capas com temas econômicos e sociais, pouco mais de 50% tratam de movimentos sociais ou sobre os franceses em geral (como a número 1104); 21% sobre sexo e sexualidade (como a número 1155); 18% sobre a criminalidade, a violência política ou o terrorismo; e 6% tratam de relações entre gerações.
Entre as personalidades midiáticas do esporte e do entretenimento, encontram-se cerca de um terço de artistas (escritores, cantores, diretores, atores, comediantes etc.) e dois terços de esportistas e personalidades da mídia.
Ao longo dos anos, essa divisão em quatro categorias principais pouco mudou. No entanto, a política se torna um assunto ainda mais presente em época de eleições presidenciais.
Irreverente e inegavelmente antirracista
Entre as 38 capas que têm como alvo a religião, mais da metade visam principalmente a religião católica (21) e menos de 20% zombam principalmente do islamismo (7). Já os judeus são sempre colocados ao lado de membros de pelo menos uma outra religião, como o islamismo, no número 1057. Três capas trazem todas as religiões juntas, entre elas as edições 983 e 1108.No total, de 2005 a 2015, somente 1,3% das capas zombaram principalmente dos muçulmanos. De fato, o "Charlie Hebdo" não era "obcecado" pelo islamismo. Se ele teve alguma obsessão, foi por políticos franceses, liderados por Nicolas Sarkozy, e em menor medida Le Pen e François Hollande.
Quanto às capas mais virulentas, pode-se considerar que elas são dirigidas contra a extrema direita francesa (números 965 e 1031) e a religião católica (números 1064, 1080 e 1111).
Embora a religião seja um assunto de capa muito menos importante e, entre as poucas capas que tratam de religião, pouquíssimas delas sejam dedicadas ao islamismo, desde os julgamentos de 2007 e 2012 sobre a publicação das caricaturas de Maomé, foram principalmente associações muçulmanas que entraram com ações contra o "Charlie Hebdo".
Em compensação, nos anos 1990, foram sobretudo a extrema direita e associações católicas que entraram com ações contra o jornal satírico. Além disso, antes mesmo do atentado de 7 de janeiro, os últimos atos violentos contra o jornal haviam sido também cometidos, após a edição "Charia Hebdo", em 2011, em nome do islã.
Necessidade de pesquisadores em ciências sociais
Segundo a análise, o "Charlie Hebdo", correspondendo à sua reputação, parece ser um jornal irreverente de esquerda, inegavelmente antirracista, mas intransigente diante de qualquer obscurantismo religioso, inclusive o muçulmano. Então, o que se deve explicar não é por que o "Charlie Hebdo" era islamófobo, mas sim por que atualmente somente extremistas que se alegam muçulmanos procuram amordaçar um jornal que zomba --entre muitas outras coisas-- de sua religião.Para avançar na compreensão desses acontecimentos trágicos e frustrar os mecanismos que os originaram, é necessário não travestir a realidade dos fatos e levantar as perguntas certas. Nós precisamos de pesquisadores em ciências sociais que coletem dados confiáveis e os analisem de maneira imparcial, para saber, entre outras coisas, em que medida os terroristas e, de forma mais geral, os fundamentalistas muçulmanos se beneficiam, na França, de uma base social que rejeita os valores da República.
Essa contribuição das ciências sociais é ainda mais urgente pelo fato de que, como afirma o sociólogo Olivier Galland, a falta de conhecimentos sérios "deixa o campo livre para interpretações e soluções simplistas".
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