O novo Egito enfrenta o risco de colapso
A luta teve início no meio da tarde na rua Talaat Harb, perto da praça Tahrir. Eu assistia enquanto homens jovens, com seus rostos ensanguentados, eram levados às pressas. A multidão se deslocava para frente e para trás sob chuva de pedras. Os homens jovens erguiam sacos de pedras, nunca escassos no Cairo, e os passavam de mão em mão para a frente. Vivas surgiam quando os manifestantes avançavam, apenas para então recuarem de novo.
Não havia nenhum traço do Estado egípcio –nada da polícia, nem dos militares– enquanto oponentes liberais e socialistas do presidente Mohamed Morsi e de seus apoiadores da Irmandade Muçulmana lutavam por várias horas, no confronto mais sangrento entre as correntes secular e islamita do país desde a revolução que derrubou Hosni Mubarak, há 20 meses. Mais de 100 pessoas ficaram feridas.
Os manifestantes na Talaat Harb, com sua passagem para a famosa praça bloqueada por uma falange de apoiadores da Irmandade munidos com pedras, ficaram furiosos. Eles há muito planejavam essa manifestação, em protesto contra os primeiros 100 dias de Morsi como presidente e contra o que consideram um processo falho e apressado de redação de uma nova Constituição. Agora, a Irmandade dominante se apossou dos procedimentos.
“Nós convocamos este protesto há três semanas, para pedir a dissolução da Assembleia Constituinte, e eles decidiram ontem vir à praça para nos enfrentar”, me disse Karima el Hefnawy, uma proeminente ativista socialista. Ela estava pálida e tremendo de raiva. “A Irmandade não trabalha pelo povo, mas pelos seus próprios interesses. Agora o povo egípcio pode ver o fanatismo deles.”
George Ishaq, um líder liberal, apresentou um veredicto lapidar: “Este é um dia negro na história da Irmandade Muçulmana”.
Eu estava entre a multidão em júbilo na raça Tahrir em fevereiro de 2011, enquanto as mesmas forças que atiravam pedras uma contra a outra na última sexta-feira –a Irmandade e os egípcios jovens mais seculares que iniciaram o levante– se abraçavam e celebravam a derrubada dos 30 anos de ditadura do Egito.
Será que o sonho glorioso de liberdade, democracia e estado de direito se desfez, como a maioria das coisas, na poeira que envolve o Cairo?
As revoluções dão lugar aos seus resultados. A união cede à desunião à medida que passa a adrenalina que une. Um inimigo comum é substituído pelos interesses concorrentes. Os alimentos ainda precisam ser comprados. O Egito não é exceção a uma velha regra. Eu conversei com vários amigos decepcionados no campo liberal, que agora dizem ser a favor do despotismo esclarecido.
Esses liberais ficaram amargos demais cedo demais. Eles também desdenham demais a estrada percorrida nos últimos 20 meses por meio de mais de meia dúzia de votações nacionais e um confronto amargo entre civis e militares –eventos que podem ter abalado o Egito, mas que viram os civis prevalecerem, generais treinados pelos Estados Unidos saudarem um presidente islamita e o estabelecimento de uma tênue estabilidade.
Mas os problemas persistentes no maior Estado árabe pressagiam um colapso que se aproxima ou a agitação do nascimento da liberdade? E será que Morsi, saído da ala conservadora da Irmandade e eleito com 51,7% dos votos, pode convencer os 48,3% de que eles também têm um lugar no novo Egito?
Essas questões oferecem outra para os Estados Unidos e para o Ocidente: será que eles deveriam oferecer os fundos muito necessários e apoio para o experimento histórico de Morsi de conciliação do Islã com uma sociedade aberta, ou concluir que uma tentativa dessas é natimorta e novamente se aliar a um déspota secular, com ou sem farda?
Os eventos da semana passada foram perturbadores. A Irmandade tem dificuldade em aceitar dissensão. Seu argumento para ocupar Tahrir –a absolvição dos oficiais da era Mubarak acusados de envolvimento de um avanço mortal com camelos contra os manifestantes na praça no ano passado– pareceu uma camuflagem para reprimir a manifestação anti-Morsi. Os islamitas não podem governar e formar a oposição ao mesmo tempo.
Morsi cometeu erros. Ele demitiu o promotor-chefe na semana passada devido à absolvição no caso dos camelos e tentou enviá-lo como embaixador ao Vaticano. Então –sim, sr. presidente, o Judiciário é independente– ele teve que devolver-lhe o cargo.
Ele fez alegações ridículas neste mês, em um grande discurso para um público composto predominantemente pela Irmandade: “Nós conseguimos 70% de progresso na segurança nacional, 60% no trânsito, 40% na coleta de lixo, 80% no pão e 85% no gás”.
Muitos egípcios, presos por horas nos 40% de trânsito oficialmente restantes, atolados nos 60% de lixo não coletado, notando os 30% de policiais ausentes, riram. (Os egípcios têm o dom de rir, um motivo para otimismo.)
Morsi é dado a longos discursos carregados de citações do Alcorão. Mas ele também mostrou habilidade ao flanquear os militares, coragem ao se erguer em Teerã e condenar o regime sírio homicida de Assad, e –para as autoridades ocidentais que lidam com ele– um forte senso da necessidade de inclusividade. Esse instinto sofrerá seu teste mais decisivo no debate crítico em torno da nova Constituição.
A liberdade não é a cláusula subordinada em que alguns liberais egípcios agora a transformam. A democracia é preciosa precisamente por ser frágil e imprevisível. O Ocidente –depois da Argélia, Gaza e décadas de hipocrisia que toleraram tipos como Assad– deve apoiar Morsi para ser melhor do que a violência da semana passada sugere.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
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