Reino Unido vai perdendo lealdade à UE
Ralf Neukirch, Christoph Pauly, Christoph Scheuermann e Christoph Schult - Der Spiegel
A Europa ganhou o Prêmio Nobel da Paz, mas ele chega num momento em que a ameaça de divisão da UE (União Europeia) é considerável. O Reino Unido está se afastando da UE e o governo alemão está permitindo que isso aconteça. No futuro, a chanceler Merkel quer avançar com projetos aos quais Londres se opõe.
David Cameron sabe que, se há uma coisa que agrada a seus colegas de partido, é um discurso forte contra Bruxelas. Na conferência do Partido Conservador na semana passada, em Birmingham, não demorou muito para que o primeiro-ministro britânico animasse seu público.
Cameron lembrou seus ouvintes das negociações com outros Estados membros da União Europeia sobre o pacto fiscal em dezembro passado. “Havia 25 pessoas na sala pedindo que eu assinasse”, disse com orgulho. “E ainda assim eu disse não.” A reação foi previsível, com os delegados aplaudindo entusiasticamente.
Os conservadores tinham entendido a mensagem que Cameron estava tentando transmitir, ou seja, que o governo de Londres não tem mais muito em comum com a Europa. Os britânicos não querem participar de uma maior integração no continente, e também querem se retirar de muitas áreas da política na qual estiveram envolvidos em Bruxelas até agora.
A nova abordagem tem consequências amplas para a União Europeia. A postura de Cameron já levou os alemães a repensarem sua abordagem. A chanceler Angela Merkel esperou por muito tempo que uma divisão permanente da UE pudesse ser evitado. Ela disse repetidamente, em particular, que não se deveria dar aos britânicos a sensação de que eles não fazem mais parte da Europa, e que a porta deve permanecer aberta para Londres.
Essas esperanças já foram frustradas. O governo alemão está convencido de que o Grupo do Euro será o núcleo de uma nova Europa, mais profundamente integrada.
Cada passo adicional na direção de uma cooperação mais estreita na eurozona aprofunda a divisão dentro da UE. Os alemães tampouco estão dispostos a esperar que os ingleses voltem atrás em outras áreas, como a política externa e de defesa. Ironicamente, a Europa corre o risco de se dividir no ano em que a UE está recebendo o Prêmio Nobel da Paz.
Isso vai muito além da Europa de duas velocidades descrita pelo ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, anos atrás. De um lado da atual divisão está um núcleo coeso de países que querem trabalhar em conjunto com mais proximidade. Do outro lado estão países como Reino Unido, Dinamarca e Suécia, que essencialmente são condenados a permanecerem como espectadores caso não queiram mais se juntar ao restante. O sonho de uma Europa em expansão e mais integrada acabou.
Os franceses não têm objeções, já que eles têm a se beneficiar com este desenvolvimento. Os países moldariam individualmente a política na eurozona, o que Paris sempre preferiu. A Comissão Europeia perderia parte de sua influência, enquanto os países do Mediterrâneo receberiam uma voz mais forte e o poder da Alemanha diminuiria.
Em 1963, quando o então presidente Charles de Gaulle bloqueou a adesão da Inglaterra à Comunidade Econômica Europeia, uma das precursoras da UE, ele disse: “A simples participação da Inglaterra na comunidade mudaria consideravelmente sua natureza e seu volume”. O mesmo se aplica agora, só que ao contrário, numa Europa em que os britânicos são, na melhor das hipóteses, espectadores na galeria, como Statler e Waldorf, os dois velhos do “The Muppet Show”.
Do ponto de vista alemão, os britânicos sempre forneceram um contrapeso à tendência francesa ao controle do governo sobre a economia e barreiras comerciais. Para Berlim, eles garantiam que a UE não competisse com os Estados Unidos no cenário político global. Foi por isso que Merkel sempre se opôs a qualquer desenvolvimento que deixasse o Reino Unido permanentemente para trás.
Mas a relutância do governo de Cameron em se comprometer deixa o governo alemão sem escolha. A posição oficial de Berlim, continua sendo que todas as etapas de integração devem estar fundamentalmente disponíveis para todos os membros da UE. Mas, na realidade, a chanceler há muito já aceitou o fato de que não haverá mais um caminho de volta ao centro da união para os britânicos.
Em uma reunião a portas fechadas com o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, em Bonn, Merkel explicou sua proposta de desenvolver um orçamento separado para a eurozona. Seus assessores vislumbram que o dinheiro será destinado a ações específicas para promover o crescimento nos países da eurozona. Se a ideia de Merkel prevalecer, será um reflexo, em termos de política fiscal, de que agora existem duas comunidades europeias sob o guarda-chuva da UE.
Barroso, que se opõe à idéia, disse a Merkel que um orçamento separado para a eurozona só aceleraria a divisão dentro da UE. O político português também tem seu próprio papel em mente. A Comissão tem uma posição forte nos 27 membros da UE, mas no Grupo do Euro, os líderes de cada um dos Estados é que seguram as rédeas na maior parte do tempo. Mas Merkel não está recuando, e sua proposta ainda deverá ser colocada em pauta na cúpula da UE esta semana.
Excluídos de decisões-chave
As questões fiscais não são a única área na qual Berlim pretende prosseguir sem Londres no futuro. Berlim também não quer ser refreada nas questões de segurança e de defesa, que pareciam fazer pouco sentido sem o Reino Unido até agora.
O ministro de Exterior alemão, Guido Westerwelle, juntamente com os seus colegas da França e da Polônia, está determinado a promover a cooperação na política de segurança da UE. No outono passado, os britânicos bloquearam uma tentativa dos outros 26 Estados membros da UE de estabelecer uma sede conjunta para missões militares. Agora, o plano deverá ser ressuscitado e implementado, mesmo com a resistência de Londres, se necessário.
A noção de que a Europa terá em grande parte que se virar sem o Reino Unido no futuro também está relacionada aos acontecimentos na eurozona. O governo alemão defende o controle parlamentar no grupo de 17 países da eurozona. Isso poderia consistir, por exemplo, da formação de um painel de delegados para o Parlamento Europeu que vêm de países da zona do euro.
Isso poderia excluir os delegados de países de fora do euro de decisões-chave. Enquanto países como a Polônia eventualmente esperam aderir ao euro, e assim serem aceitos no círculo de liderança da Europa, o Reino Unido definitivamente exclui a adesão ao euro.
Força divisória
Os britânicos são cada vez mais percebidos como uma força divisória no Parlamento Europeu. Dificilmente passa um dia sem que eles levantem novas demandas, diz Herbert Reul, presidente do grupo que representa a União Democrata Cristã (CDU), da centro-direita alemã, e seu partido irmão da Bavária, a União Social Cristã (CSU), no Europeu Parlamento. Reul diz que o sentimento de que eles deveriam simplesmente sair se tornou comum entre seus colegas.
Cameron não quer deixar que as coisas cheguem tão longe, e espera evitar uma saída oficial da UE pelo maior tempo possível. Mas enfrenta um dilema. Por um lado, ele tem que fazer concessões para seus parceiros de coalizão, os liberais-democratas, que ainda veem vantagens na adesão à UE. Por outro, ele vê como se fortaleceu o Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), populista de direita, atingindo entre 7 e 12% nas votações. O Ukip quer que o Reino Unido se retire totalmente da UE.
Acima de tudo, entretanto, Cameron precisa lidar com o público, que teme que os burocratas de Bruxelas tomem conta do Reino Unido. Nas pesquisas de opinião, cerca de 50% dos britânicos dizem que votariam para a retirada da UE num referendo.
Avaliando o impacto
Durante o verão, o secretário do Exterior, William Hague, anunciou uma avaliação ampla dos impactos, bons e ruins, das leis da UE sobre o Reino Unido. Hague quer examinar todos os tratados nos quais seu país transferiu poder a Bruxelas. A iniciativa é também uma concessão à minoria do parlamento que apoiaria uma retirada e que, apesar de ter pouco poder, recebe muito apoio do povo por conta de sua posição crítica em relação à Europa.
Para a auditoria, cada ministério do governo irá entrevistar inicialmente as empresas e associações dentro do seu âmbito de responsabilidade para determinar como elas se sentem em relação a certas diretrizes, regulamentos e acordos. “Isso é o governo convidando todos os grupos de interesse do empresariado e da sociedade britânica para dar sua opinião – tanto o lado bom quanto o lado ruim.”, diz David Lidington, ministro para a Europa no ministério de Exterior. Uma equipe do governo preparará relatórios com base nesses pareceres, que serão publicados pouco a pouco até o final de 2014.
A auditoria, basicamente uma análise gigantesca de custo-benefício, deve começar neste outono. Nenhum membro da UE se aventurou a fazer algo do tipo até agora, em parte porque muitos líderes europeus temem que a união possa ruir mais rapidamente se cada membro escolhesse quais leis prefere, como se estivesse escolhendo pratos num cardápio.
Tradutor: Eloise De Vylder
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