E OS FINLANDESES FORAM ÀS URNAS!
Mauro Pereira - Blog do Ricardo Setti
O
resultado da eleição presidencial não se destacou apenas pela campanha
eleitoral que o precedeu e que deixará como lembrança a sombria
constatação de que ficará marcada nos anais de nossa história política
como uma das mais sórdidas e rasteiras que a sociedade brasileira já
testemunhou.
Deixou transparecer, também, um insólito fenômeno quase imperceptível
mostrando que embora vivamos sob a égide da mesma bandeira e da mesma
Constituição, dois povos distintos conviveram simultaneamente durante um
pequeno lapso temporal realidades antagônicas nos grotões desse imenso
território verde e amarelo.
De um lado, seduzidos pela notável capacidade de convencimento da
candidata reeleita, 54 milhões de brasileiros e brasileiras acreditaram
que eram finlandeses e que viviam na Finlândia, um dos países mais
desenvolvidos do mundo e, por causa disso, reverenciado
internacionalmente pelo elevado padrão de vida que oferece à sua
população, além de se sobressair como uma das nações com os menores
índices de corrupção do planeta.
Entorpecidos pela sensação inusitada, os lapões tupiniquins foram às
urnas e não desperdiçaram a oportunidade de extravasar a extensão do seu
contentamento com o poder central, outorgando à sua presidente mais um
mandato de quatro anos.
E nem poderia ser diferente, afinal estavam convictos de que
habitavam uma nação onde a miséria praticamente inexiste, o índice de
criminalidade é ínfimo, a média do salário dos trabalhadores permanece
consolidada bem próxima de três mil dólares mensais e a imensa maioria é
valorizada com empregos decentes, tudo isso assentado em um crescimento
econômico vigoroso e constante.
Em reconhecimento a números e dados de tamanha envergadura,
decidiram, então, que tinham a obrigação moral de retribuir com o voto
aos benefícios advindos do bem elaborado plano habitacional que assegura
a praticamente 100% da população o acesso à casa própria, ao privilégio
de terem à disposição um primoroso programa de assistência médica e
hospitalar e à constatação de que os aposentados são homenageados com a
contrapartida do salário digno.
Orgulham-se de seus governantes que durante todo o mandato
conservaram intacto o imaculado manto da honestidade mantendo-o
impermeável à prática nefanda da corrupção e que com habilidade
reservada somente aos grandes estadistas conseguiram consolidar, sem
precisar lançar mão da excrescência da cooptação ou de qualquer outra
ilicitude, uma maioria sólida no Congresso Nacional suficientemente
capaz de garantir a implementação de ousado e moderno projeto de governo
concebido para atender as justas demandas do seu povo.
Não fazem questão de disfarçar o ufanismo incontido que lhes eleva a
autoestima ao revelarem ao mundo a inatacável retidão de caráter de seus
representantes no Executivo Federal, cujo exemplo de ética se
evidenciou ao coibirem com veemência o uso da máquina do Estado no
desenrolar da campanha não permitindo que o eleitor fosse achacado com a
ameaça da perda de benefícios sociais caso votasse no candidato
adversário e ameaçando, inclusive, exonerar qualquer ministro que se
atrevesse a tirar proveito de sua privilegiada condição para angariar
vantagens eleitorais.
A fulgência desse cenário resplandecente apascenta suas consciências,
uma vez que seus idosos são venerados, seus jovens têm garantido o
acesso a uma educação de altíssimo padrão e suas crianças podem
manifestar todo o saudável esplendor de sua morenitude nórdica,
preservadas que são por uma intransponível malha protetora que as mantém
incólumes à ação maléfica de fossas cépticas imundas, distantes de
águas apodrecidas e salvas das barbáries da exploração sexual e do
trabalho infantil.
Do outro lado, restou aos 51 milhões de miscigenados brasileiros
orgulhosos dessa mistura, além de manifestarem sua brasilidade,
assistirem com indisfarçável ponta de inveja a justa festa da vitória
que recepcionou a madrugada inebriante iluminando-a com a exuberância
dos fogos de artifícios que riscaram os céus da avatárica República
Federativa da Finlândia dos Trópicos.
Felizmente, me mantive imune à sedução e, como prêmio, não fui convidado para essa comemoração!
Tomo por óbvio que, a bordo do trem-bala que a acomodou, essa
multidão ainda viaja pelos trilhos da insolitude e curte inebriada as
últimas paisagens dessa aventura pelo interior gelidamente ensolarado da
Finlândia tropicana que se refugiou; entretanto, não me parece
desonesto presumir que superada a festança, o êxtase se dissipará e a
grande maioria dessa procissão composta por brasileiros que jamais
tiveram o menor contato com o significado da palavra cidadania será
remetida de volta à dura realidade que a cerca, obrigando-a a encarar
novamente, e com a mesma submissão, a crueza do cotidiano que a mantém
refém da chantagem oficial, vítima da pilantropia inescrupulosa do
governante de plantão e escrava de sua triste ignorância.
Talvez na próxima eleição apareça alguém hábil o suficiente para
reunir outros 54 milhões de eleitores e fazê-los sentirem-se finlandeses
outra vez, nem que seja por um curto espaço de tempo. Quem sabe?
No Brasil real, lamentavelmente, entre brancos, nulos e abstenções feriram-se todos.
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