Na
dúvida entre salvar a economia, as instituições ou a governabilidade,
mantemos o país eternamente afastado da Justiça.
Eduardo Perez - Senso Incomum
Fiat justitia ruat caelum, a expressão latina que significa “seja feita justiça, ainda que os céus caiam”.
Mesmo que seja possível relacioná-la à
antiguidade, atribuindo-a a Lucius Calpurnius Piso Caesoninus (43 a.C.),
seu uso é relativamente moderno, retrocedendo ao século XVIII,
merecendo até citação de David Hume, apesar deste autor considerar a
justiça um artifício que pode vir a ser contrário ao interesse público.
O seu significado é bastante claro: a justiça deve prevalecer acima de quaisquer consequências.
Essa frase é sempre oportuna de ser
lembrada no Brasil, um país que vive de escândalos abafados e intrigas
palacianas, mas sua reflexão se torna urgente quando a turma do status
quo decide dizer que não é o momento de afastar um presidente pego em
gravação constrangedora em que se conjuram esquemas de corrupção.
O mesmo argumento foi usado com relação à
presidente anterior, vítima de impeachment, e tem sido gasto à exaustão
como um dos elementos a justificar a liberdade de um ex-presidente, réu
em ações criminais em andamento.
Também com relação às empresas
envolvidas nos escândalos de corrupção, argumenta-se que elas não podem
sofrer toda a pressão da lei, considerando a economia e os empregos que
geram.
O fato todo ainda é bem recente. Ontem,
17 de maio e 2017, era divulgada gravações envolvendo o atual presidente
e um senador da República. Hoje, o mercado brasileiro derrete: a Bolsa
de Valores sofreu um circuit breaker, dólar dispara.
O argumento de que é péssimo para a economia do país que os políticos envolvidos sofram a sanção da Justiça ganha força. Será?
É
verdade que o país passará por uma situação de abalo. Há indícios
pungentes de que os grandes partidos políticos estão envolvidos em casos
de corrupção, grandes figuras da República estão tendo seus atos
sórdidos revelados ao público. Executivo e Legislativo comprometidos, e
não parou por aí. Outras instituições correm risco.
Para manter a estabilidade do país devemos fechar os olhos à corrupção e permitir a impunidade?
Sem pensar, o raciocínio parece coerente. Uma urgência temporária. Mas e se pensarmos a respeito?
Chegamos onde chegamos após décadas de
corrupção e dilapidação do patrimônio público, ou melhor, do dinheiro do
contribuinte, já que é de onde vem a renda do Estado.
Agora, a melhor proposta para o povo,
aquele que banca o cabaré e só é chamado para limpar o chão depois das
festas, é manter as coisas como estão. Aceitar a corrupção das altas
esferas como um elemento ínsito à brasilidade.
Exemplificando, é como se tivéssemos uma
árvore podre por dentro em frente à nossa casa. Alta, robusta, mas
podre e tendente a cair a qualquer momento. Em vez de cortá-la, os
cupins aparecem e sugerem que somente podemos alguns galhos, aqueles
mais próximos ao chão.
Ora, essa árvore cairá em algum ponto, estrondosamente. Esmagará nossa casa, talvez mate a nós, nossos filhos, nossos parentes.
Ainda, é o marido, ou a esposa, traído
que pega o traidor no ato, mas ouve dele a proposta de manter o
casamento, afinal, seria economicamente incômodo para ambos ter que
resolver a questão patrimonial.
Em outras palavras, o povo foi vítima
dos atos de corrupção e a melhor proposta dos especialistas é que ele
continue sendo vitimado. Para melhorar sua condição? Aparentemente, só
para não ficar pior. No fundo, é para garantir a impunidade dos agentes
criminosos.
O raciocínio é ainda mais sombrio. A
ideia é de que aplicar a Justiça contra os corruptos em situação de
poder econômico e/ou financeiro desestabilizaria o país, mesmo diante de
provas incontestes de sua conduta, equivale a dizer que o capital
nacional e estrangeiro não se importa com a corrupção, desde que ele
tenha segurança para continuar a lucrar.
Lógico que podemos falar em
instabilidade da economia, retração do mercado, receio de medidas
econômicas agressivas, confisco e outras intercorrências próprias de um
governo que não se sustenta. Contudo, se a proposta é de que a
manutenção de um governo corrupto é melhor (para quem?) do que a
aplicação da lei contra os agentes criminosos, resta inconteste a
conclusão do parágrafo anterior.
É muito mais preocupante entender a
corrupção como um sistema de normalidade institucional do que limpar o
Brasil, ainda que se tenha que abalar as fundações e reconstruir o
Estado.
Uma história curiosa ligada
indiretamente à expressão latina que abre esse texto é a passagem
histórica de quando Alexandre, o Grande, recebeu o povo celta do
Adriático. Questionando aquela raça alta e robusta sobre o que mais
temiam, na expectativa de ouvir seu nome, teve a resposta de que os
celtas não temiam ninguém, mas apenas que o céu lhes caísse sobre a
cabeça, situação utilizada amiúde no quadrinho do Asterix.
Devemos nós, o povo da planície, temer
que o céu caia sobre nossas cabeças? Mais perto dele, céu, estão os
olimpianos que compõem a alta casta política brasileira, desde os mais
poderosos até os pequenos serviçais, humoristas e canetas de aluguel,
defendendo a manutenção de um status quo onde a população continua a
sustentar o paraíso dos corruptos sobre suas costas, agora sem nem mesmo
previsão de se aposentar.
Há informações públicas de que a empresa
de um dos sócios que fez essa delação e divulgou as gravações estaria
lucrando, hoje, com a alta do dólar, a mesma empresa que teria sido
supostamente notificada de forma prévia da queda da taxa SELIC pelo
mesmo presidente, dados com os quais obteve lucro.
Se o céu não cair sobre nossas cabeças,
inevitavelmente o chão abrirá para nos engolir, o mesmo chão do qual
estamos tão próximos, horizontalizados na exploração da alta carga
tributária, da violência e da corrupção endêmica.
A Justiça deve prevalecer, não importam
as consequências. De outra forma estaremos sinalizando que existem
pessoas impermeáveis à lei, cujos atos não são alcançados pelo Estado
organizado, levando à conclusão de que, ou se aceita a imunidade desses
atores, ou se derruba o Estado, ambas soluções trágicas e que em seu
bojo trazem violência, fome, doença e morte.
O trabalho executado pela Polícia
Federal e pelo Ministério Público, e as decisões do Judiciário, estão
mostrando a verdadeira face do Brasil. Ao povo compete decidir se
colocará suas ideologias e preferências partidárias acima da razão, ou
se dirá “queremos Justiça, ainda que caiam os céus”.
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