Procurador-geral da República, Rodrigo Janot, durante sessão no plenário do STF - 29/03/2017 (Pedro Ladeira/Folhapress)
Não me lembro de, tendo tido
a essencial leveza de coração para reconhecer as oportunidades de fruir
a beleza da vida e do mundo, eu as tenha recusado. Hesitei algumas
vezes porque a beleza – como todo anjo, segundo o poeta – pode ser
terrível, mas só para depois me render com a determinação de uma alma
capturada. Os desfechos foram como tinham de ser. Mas nada nem ninguém
tira de nós a lembrança da vista lá de cima. Não é terrível?
Agora o abatimento a que vinha resistindo me faz resistir à beleza de um texto essencial de Augusto Nunes: sim, “a limpeza dos porões precede o parto de uma república de verdade”,
mas meu aluguel vence antes disso; antes disso também, no dia seguinte à
notícia de que Temer havia sido gravado em conversa com um esley, li
que médios e pequenos empresários que contratariam projetos e empregados
nos próximos dois meses cancelaram tudo. Tecida a treva, quando ficou
claro que a gravação não trazia exatamente o anunciado, era tarde para a
lucidez. Não sei se há salvação judicial para o cidadão Temer, mas para
o político o oxigênio se rarefaz, como calculou o desatinado
refundador-geral da república. Lamento pelo tombo do país sobre os
próprios porões que o deixa em situação mais perigosa do que quando
consumado o impeachment de Dilma porque agora há uma inédita união de
forças revigorando, objetivamente ou não, aquelas derrotadas no
impeachment e nas eleições municipais de 2016. Temer significava a
solução constitucional, o restabelecimento do fundamental diálogo entre o
Legislativo e Executivo, medicava a economia e os horizontes se
clareavam com as reformas mesmo tímidas. Tornou-se um presidente
obsoleto fadado a continuar governando (?) se defendendo, condutas
inconciliáveis.
Agora não se sabe quem retomará o
trabalho no viveiro-Brasil de oportunistas asquerosos movidos pelo medo
de cadeia e confiantes na mudança dos ventos promovida por Janot cujas
ilegalidades mambembe-ideológicas tiraram do PT o que o define: o
comando da roubalheira desvelada pela Lava Jato. Aliados subjetivos
dessa narrativa em que Lula e congêneres se lavam na sujeira alheia, os
idealistas com complexo de virgindade, alimentados pela imprensa
fast-food – cujo cardápio tendo alfafa como acompanhamento ao gosto da
manada – anuncia ameaças à LJ em qualquer mesóclise, fraturaram a lógica
de tal maneira que, quando precisamos dramaticamente de um político
hábil (no bom sentido) para encaminhar as reformas com
esse-Congresso-que-está-aí ou que simplesmente conduza o país com algum
bom senso até 2018, enxergam esse político em Carmem Lúcia (a ministra
com nojinho de política) ou no irascível populista Joaquim Barbosa (o
ex-ministro do STF que livrou Lula do mensalão e conseguiu ver quadrilha
sem chefe): somos uma nação despedaçada, melancolicamente vocacionada
para o absurdo.
Não defenderei político desonesto, mas
também não aplaudirei agentes da lei fora da lei: a gozosa – para eles
próprios – delação dos esleys (Jo e W) tem uma alarmante cadeia de
ilegalidades, arbitrariedades e estranhezas de muitos conhecida, embora
por poucos considerada na amplitude de sua gravidade, que clama pela
anulação sem prejuízo das investigações. Antes que perguntem quem sou eu
para falar em ilegalidades, esclareço que não sou ninguém, eu e mais
14.199.000 (até 28 de abril) de desempregados não somos ninguém, somos
apenas estatística: não comemos, não compramos remédio, não pagamos
aluguel, não temos projetos para nossos filhos, sequer temos sonhos e
nossa angústia não é notícia na GloboNews.
Não tenho bandido de estimação; não fui
às ruas por Michel Temer; não entoei o “fora, Dilma” nem quando marchei
pelo impeachment porque acho esse “fora, fulano(a)” uma brutal
estupidez. É que estamos todos dentro da mesma porcaria interminável –
ainda que dividida entre arquibancada e camarotes – renovada na campanha
delirante por uma constituinte já, de bonzinhos e espertalhões por
diretas já e de resignados (como eu) por indiretas já. Receio, todavia,
que para já só temos a bifurcação de simplesmente tentarmos ficar vivos
ou tentarmos o suicídio supervisionados por Fátima Bernardes com o
patrocínio da Seara, rindo da graça que Faustão não tem sob o patrocínio
do Banco Original. Banco, presunto, suicídio: tudo um gentil
oferecimento dos esleys.
Em artigos deploráveis, Rodrigo Janot
justificou seus meios no mínimo questionáveis citando seus fins no
mínimo nebulosos. Meios justificados pelos fins é uma tese sórdida que
não pode nortear agentes da lei em nome do que consideram “os interesses
do país”. Ora, os interesses do país são basicamente o cumprimento da
lei dentro da lei. Sem isso, não haverá chance para a república
devastada se reconstruir sem as barbáries que a Lava Jato eviscerou. Ou
os brasileiros de bem partidários do impeachment de Dilma aderimos a
alguma ilegalidade contra a ex-presidente nascida do cruzamento de um
jeca com a projeção de si mesmo? Não. Sempre rejeitamos golpes,
intervenção militar e restrição ao direito de defesa; como rejeitamos a
pequenez de Dilma perante o definhamento da nação no processo inútil e
pateticamente prolongado. Janot reclamou que o eixo do debate foi
deslocado; ora, isso resultou da força gravitacional das próprias
lambanças.
Some-se a isso a violação do sigilo de
uma das fontes do jornalista Reinaldo Azevedo, crítico do petismo e do
que considera abusos da LJ. E os urubus passeiam entre os girassóis
comemorando a ilegalidade, têm a mente tão binária que não percebem o
real nem se este lhes desabar sobre a cabeça fechada: arbitrariedades
contra quem não gostamos também podem abater quem gostamos e culpa e
inocência passam a ser uma questão de “lado” num efeito abominável do
deletério “nós” x “eles”. É esse o país melhor que buscávamos com o
impeachment? Em um surto de ilegalidade, Janot acolheu a gravação da
conversa (imprópria, mas sem configurar crime) entre um esley e Temer.
Não sei se o presidente é inocente ou culpado, mas ele se enfraqueceu a
ponto de tudo o que pode fazer pela nação perplexa e em permanente
náusea é renunciar. Se renunciar é admissão de culpa, ter de se defender
diariamente até o fim do mandato mais cristaliza um cotidiano de
acusações do que evidencia inocência.
O país vinha clareando seus porões,
gradativamente de modo a não desabar sobre eles. Não deu tempo. Como
cidadãos comuns e exaustos da canalhice de qualquer cor ou lado, não há
contradição em nos indignarmos com os eventuais crimes de Temer e também
repudiar a emboscada que derrubou um país que se reerguia. Ah, o Brasil
sempre sobreviverá, segundo a poesia ruim de Carmem Lúcia. Claro,
excelência: o Brasil do marajanato sob uma toga ou abrigado em nobres
salões. Alguma curiosidade sobre como estamos sobrevivendo os 14.200.000
de desempregados?
Enquanto isso, os petistas e aliados
aproveitam a trilha forçada por Janot; Lula apresenta-se para comandar a
sucessão antecipada de Temer. Quem estiver esperançoso com a
“refundação da república” passando na tela da Globo, repense: não há
esperança para um país em que a lei garante aos esleys um exílio com
vista para o Central Park e os padrinhos deles se lavam na sujeira
alheia. Depois de implodir as reformas, nocautear o presidente que não
lhe é ideologicamente palatável e anular a oposição ao petismo, Janot
conseguiu adiar o futuro. Nessa realidade terível, quem, se 14.200.000
gritassem, ouviria entre as ordens de anjos?
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