domingo, 2 de julho de 2017

Valentina de Botas: Quando entrar setembro e outras notas
Os rivais das reformas de que o Brasil depende têm seu santo padroeiro na figura do procurador-geral
Janot conseguiu fatiar a denúncia contra Temer mantendo o presidente e o país nesta atmosfera úmida de fim-de-mundo. Também ajuizou uma ação de inconstitucionalidade contra a terceirização da atividade-fim, fóssil trabalhista que só respirava na legislação fossilizada do TST e aumenta os custos de quem produz e gera empregos. Não tem ideia do que é custo quem, do topo do marajanato do funcionalismo público ou nas cercanias dele, não lida com a vida empírica num Brasil arcaizado por velharias como a que Janot quer resgatar. Na mesma guilda ideológica, chafurdam sindicalistas, petistas e congêneres. Sem gerar um só emprego, sem arriscar um só centavo empreendendo, sem conhecer a apreensão para fechar a folha de pagamento todo mês, sem saber da angústia se terminará o expediente ainda empregado, sem compromisso com a eficiência, sem ter de se preocupar com a concorrência, os rivais das reformas de que o Brasil depende têm seu santo padroeiro na figura do procurador-geral. Aparentemente, Janot resolveu trabalhar nos últimos meses de seu mandato cumprindo esta pauta de esquerda para, quando entrar setembro, Temer e tantos mais brasileiros percam o emprego. Na pressa, o PGR se esqueceu das provas. Nestes dias que são assim, quase ninguém sentirá falta delas, aposta. Tivesse mais competência e apetência para o trabalho, mais obediência à lei e nenhuma paixão política, Janot poderia ter monitorado Rocha Loures até o ex-deputado receber quatro ou cinco das centenas de milhares de malas semanais de dinheiro que, na anedota de Janoesley, Temer pediu até os 102 anos de idade para proteger a JBS no Cade. Em vez de esperar essa sequência que poderia robustecer a denúncia de corrupção passiva contra o presidente, preferiu pegar Loures na primeira mala e acabou apresentando uma denúncia vexaminosa. Mas até setembro, o PGR permanece na semeadura de crises e desencanto para a colheita de um presidente representante das forças derrotadas no impeachment.

Cansados e ignorados

Claro que a Lava Jato não abala a economia, mas o petismo, esta soma miserável de incompetência com roubalheira. Tanto é assim que o impeachment de Dilma Rousseff fez a economia parar de piorar e o governo Temer, com as investigações em andamento, conseguiu fazê-la começar a melhorar. Mas também é claro que essa coisa meio vaga mesmo concreta, chamada país, foi impactada pelas acusações de Janoesley e a reconstrução do futuro recuou. Acontece que, a despeito do que pretende o Pravda Global expandido, o Brasil vago e concreto procura alguma estabilidade na instabilidade e percebeu que, se são todos bandidos e se a política virou uma guerra de facções em que cada uma tem juízes/ministros/meganhas preferenciais e porta-vozes menos ou mais influentes, o negócio é cuidar da vida ignorando essa gente o quanto possível já que por ela é ignorado.

Atmosfera inebriante
A atmosfera estava tão úmida que os peixes poderiam entrar pelas portas e sair pelas janelas, navegando no ar dos aposentos. Me lembrei dessa passagem de 100 Anos de Solidão pensando que, na umidade em que nos afogamos desde a notícia da conversa imprópria gravada entre Temer e Joesley, a transição da razão para a loucura impregna o ar. Então, é assim que, segundo o Pravda Global expandido, Raquel Dodge chefiar a PGR revela 587 pmdbistas, regidos por Gilmar Mendes, entre os procuradores votantes. Todos sabemos que o tônus e a tara do PMDB são cargos públicos… mas concursados? A Temer está vetada uma prerrogativa do cargo – escolher da lista tríplice quem ele quiser e até mesmo fora dela –, parece que a única prerrogativa que lhe concedem é pedir para sair. Na umidade encharcando tudo, a PF suspender a emissão de passaportes reproduziu discursos de alerta úmidos de imoralidade: “querem-acabar-com-a-Lava-Jato”. A PF periodicamente suspende a emissão de passaportes e os procuradores que denunciaram o mela-LJ do dia sabem como funciona o orçamento, que uma rubrica não interfere necessariamente na outra. A PF sabe e jornalistas que querem saber podem saber se quiserem. Mas informar sem deformar interrompe o gozo da manada no país úmido de caos impregnado no odor de imoralidade trescalante dos moralistas histéricos: no dia seguinte, com a umidade banhada na histeria orquestrada, descobriu-se que a verba foi mal utilizada pela PF, nada mais.  Não tem jeito, enquanto a PF (com um relatório contra Temer baseado em considerações sociopolíticas), o MPF (com procuradores escrevendo artigos panfletários e institucionalmente inadmissíveis) e o PGR (querendo decidir quem governa o país em vez de trabalhar direito) agirem politicamente, provas deixam de ser obtidas, investigações perdem o foco e as denúncias resultam inconsistentes. Tudo somado, confirma-se que a LJ só pode ser prejudicada por si mesma enquanto não entender que a bandidagem teme apenas MPF e PGR independentes, aqueles que preferem a eficiência dentro da legalidade à militância panfletária.

Legado reciclado
Janoesley, Fachin, Temer e o país no meio de uma guerra entre facções, eis o miserável legado petista. Os tutores da nossa indignação nos interpelam diariamente: por que a população não vai às ruas? Ora, e o que fazemos com a vida pra se ganhar e com esse desencanto nos olhos de ver horizontes desfeitos? Do Pravda Global a porções do MPF e os procuradores-gerais que se calaram enquanto o PT construía o legado miserável do desencanto, todos querem a cabeça do mordomo que, mesmo integrando o legado, ameaçou timidamente desmontá-lo reformando o país e ampliando o diminuto espaço para o pensamento liberal. Ele não pode ser investigado? Claro que pode, afinal Janot informou à nação que ninguém está acima da lei, somente Dilma Rousseff (que ele não denunciou por Pasadena, por exemplo), ele próprio e Joesley. Também eu quero que o mordomo legado pela organização criminosa se entenda com a lei, só que dentro da lei. Não é o que está acontecendo, qualquer rês fora da manada sabe disso, e as ilegalidades de Janot e Fachin resultam na reciclagem do legado.

Mulher Maravilha e Hesíodo
Não foram as broncas de mamãe porque eu rasgava ou perdia as fronhas que amarrava na cabeça para brincar de Noviça Voadora que me fizeram mudar de heroína para a Mulher Maravilha, dois seriados deliciosos de tão tosquinhos da minha infância, mas principalmente o look de maiô com botas e o avião invisível da Lynda Carter. Que garota que quer ser mulher e poderosa resistiria? Em Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo, há quase 3.000 anos, deixou para Homero os prodígios dos heróis gregos, e, exortado pelas Musas, abordou os fardos no coração dos homens e como essas criaturas só podiam ter esperança na Justiça, a filha preferida de Zeus. Pequeno agricultor dependente do trabalho diário e braçal para sobreviver, o poeta arcaico questiona por que o mal existe quando o irmão corrompe juízes para tomar-lhe a terra que lhe cabia na partilha da herança paterna. Hesíodo é particularmente interessante pela referência ao “eu” narrativo-poético numa voz autobiográfica pertencente a um ser histórico, o primeiro poeta ocidental a fazer considerações sobre sua vida pessoal e a falar em seu próprio nome. Talvez isso marque a passagem de uma poética em que o aedo deixa de ser um mero intermediário das musas para estabelecer uma individualidade demarcada no mundo. Não sei. Nem importa se o eu hesiódico era ficcional ou não, mas que a observação posta ali era a de uma vida passível de ser vivida por qualquer homem daquela época, a dos “reis devoradores de presentes”, em alusão à corrupção, num tempo em que reis administravam a Justiça. Também antes de Hesíodo e depois dele (Kant, Pascal, Camus, Unamuno, Hannah Arent, Santo Agostinho, etc.), a gente se pergunta qual o papel do mal no mundo e sobretudo: se há um Deus e Ele é bom, por que existe o mal? Das muitas teorias disponíveis, gosto da que diz que o mal está aí para que o bem se revele e que Deus fez o mundo assim para que tenhamos a oportunidade de O ajudar a melhorar Sua obra, o que nos inclui. Não sei. O que sei é que a bela Gal Gadot merece uma frota de aviões invisíveis pela atuação natural no ótimo e despretensioso Mulher Maravilha. Vá assistir, eu fui com meu avião invisível.

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