sábado, 24 de maio de 2008

"Vejo vir os gestos, as cortesias, as ações do confim dos séculos. Isto é nada - é vulgar e cotidiano. É apenas uma aparência.
Reparo melhor na vida secreta e na vida subterrânea. Compreendo como é difícil todos os dias e todas as horas, como através de tudo é forçoso seguir um fio invisível - e ser reles e sorrir. Gasta-me uma força superior, e com todas as chagas e todos os vícios, com a vida mesquinha e a vida cotidiana, o nada, o fel e o vinagre, tenho de arcar com uma coisa imensa de que separa apenas um tabique. Tudo o que faço é um arremedo.
Todos suportam o drama de todos os dias, o cinzento de todos os dias, as aflições e a usura que tornam as figuras ridículas. Todos suportam os tratos que envelhecem e preparam para a cova, os pequenos interesses, a inveja, a ambição e a dor física.
Atrás da insignificância andam os céus, os mundos, os vagalhões dourados. Anda o desespero. Anda o instinto feroz. Atrás disto andam as enxurradas de sóis e pedras, e os mortos mais vivos do que quando estavam vivos.
Atrás das palavras com que te iludes, de que te sustentas, das palavras mágicas, sinto uma coisa descabelada e frenética, o espanto, a mixórdia, a dor, as forças monstruosas e cegas.
Em certas ocasiões, se as palavras e a insignificância desaparecessem da vida, só ficaria de pé o espanto.
Para não ver, para não ouvir, é que nos curvamos sobre a mesa de jogo. Para não te ouvires a ti mesmo, para não veres o que te gasta a todos os minutos e a todas as horas, usura imensa que não sentes e que te vai levar para o escantilhão sôfrego, que te vai mergulhar no silêncio profundo. Usura de todos os instantes. Gasta-nos, desgasta-nos. E todos os dias acordamos mais velhos, todos os dias acordamos mais inúteis. Todos os dias acordamos com mais fel. E todos os dias com mesuras, sem gritos de terror, nos curvamos sobre esta mesa de jogo, não vendo, fingindo que não existe, o espanto que está ao nosso lado, e o espanto pior que trazemos conosco. Chama-se a isto o cotidiano. Isto não tem importância nenhuma. Com isto enchemos a vida até chegar a morte.
Esta mesa de jogo é a nossa existência vulgar, a vida de todos os dias, com o galope da outra vida ao lado.
Estamos aqui todos à espera da morte! Estamos aqui todos à espera da morte!"
Húmus - obra prima de Raul Brandão.

Um comentário:

Ana Paula Saab disse...

Nossa, professor! Quanto niilismo! Ainda recluso por conta de tua coluna? Daqui a pouco vai postar Schopenhauer! As Dores do Mundo. E eu vou adorar!