sexta-feira, 30 de maio de 2014

O anticlímax 
Merval Pereira - O Globo
A antecipação da aposentadoria do ministro Joaquim Barbosa no Supremo Tribunal Federal (STF), de notícia bombástica, foi transformada em anticlímax por decisão do próprio, o que fala bem dele.
Não caiu na tentação de entrar para a política e anunciou sua saída de cena em momento em que ela não tem a menor importância para o jogo de interesses que está em plena ebulição nos bastidores partidários.
Se houvesse decidido concorrer, e poderia fazê-lo até mesmo à Presidência da República, teria sido mais criticado do que normalmente é, e todo seu trabalho como relator do processo do mensalão estaria colocado sob suspeição.
Se permanecesse no STF até depois da eleição, talvez pudesse ser nomeado por um candidato oposicionista que eventualmente vença para um cargo qualquer, desde ministro até embaixador — dando o troco no Itamaraty que o reprovou, ele está convencido disso, por racismo.
Escolhido por Lula para representar a diversidade racial no Supremo, Joaquim Barbosa recusou-se a atuar como um preposto do presidente que o nomeara, e marcou sua presença no plenário do STF pela independência de posições e pelo desassombro verbal. E entrará para a História do tribunal pela condução polêmica, mas eficiente, do processo do mensalão.
Poliglota, com formação nas melhores universidades dos Estados Unidos e da Europa, lamentava que as pessoas não olhassem seu currículo, mas a cor de sua pele. Ele sempre considerou inaceitável a interpretação que resultasse em penas mais leves nos casos em julgamento do mensalão, pela gravidade que via neles, e teve de enfrentar críticas de advogados, inclusive da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e dos próprios pares, como o ministro Luís Roberto Barroso — que, entrando no julgamento em sua segunda fase, a dos embargos infringentes, acusou o plenário anterior do STF de exacerbar seletivamente as penas no caso de formação de quadrilha para deixar os condenados mais tempo em regime fechado, especialmente José Dirceu.
Já como presidente do Supremo, o ministro Joaquim Barbosa rebelou-se contra essa acusação, dizendo que Barroso fazia um discurso meramente político sob uma capa de tecnicalidade.
Aproveitando que Barroso, ao explicar sua expressão “ponto fora da curva”, disse que ela significava também — além da exacerbação das penas — “o rompimento com uma tradição de leniência e impunidade em relação a certo tipo de criminalidade política e financeira”, Joaquim Barbosa aparteou-o dizendo que na prática, defendendo a prescrição do crime de quadrilha, Barroso estava sendo leniente com os crimes que parecia condenar em seu discurso político.
Barbosa encarnou para o cidadão comum a indignação contra a histórica impunidade das classes dirigentes no Brasil, o herói vingador em busca de Justiça, com a capa preta tradicional que lhe dava a aparência de um Batman tupiniquim.
As críticas de Barbosa ao sistema penal brasileiro, explicitadas em diversas ocasiões em entrevistas ou mesmo em declarações em meio aos julgamentos de que participava, explicam seu empenho em dar penas mais pesadas aos réus.
Em sua opinião, o sistema penal brasileiro, é “risível”. A preocupação com a prescrição de algumas penas, como a de lavagem de dinheiro, era realmente um dos objetivos da aplicação de pena maior por parte do relator Joaquim Barbosa, e ele chegou a admitir isso na discussão com Barroso.
Por isso, também, ele errou a mão ao tratar de certos assuntos, como a permissão para que o ex-todo-poderoso Dirceu trabalhasse fora no regime semiaberto. Embora a legislação diga que somente depois de cumprir 1/6 da pena é que o condenado tem esse direito, a jurisprudência tem superado essa exigência há muitos anos, até mesmo pela impossibilidade de manter em cadeias apropriadas todos os condenados.
Todo o processo do julgamento do mensalão correspondeu a um avanço da cidadania, inclusive os bate-bocas ocorridos no plenário do STF transmitidos ao vivo e a cores pela TV Justiça. Até mesmo o grau de endeusamento a que foi levado o relator do processo, o ministro Barbosa, faz parte desse aperfeiçoamento de nossa democracia, que chegará um dia a não precisar de heróis.

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