Rodrigo Constantino
Um homem indo protestar contra Trump, com a bandeira americana invertida. Fonte: Reuters
As guerras entre Trump, a mídia, o “deep
state” e os “progressistas”, com inúmeras acusações de conluios,
corrupção e escândalos, são apenas sintomas de uma divisão bem mais
profunda entre os americanos que está chegando ao seu perigoso ápice.
Essa é a tese defendida por Victor Davis Hanson em sua recente coluna na National Review.
Para Hanson, houve quatro ocasiões
históricas em que o povo americano se viu tão dividido assim, e que
quase se partiu ao meio, com aquilo que parecia uma linha divisória
irreconciliável, seja do ponto de vista cultural, econômico, político,
geográfico ou social. Um caminho que levou ao ódio e à violência.
A primeira foi a Revolução Jacksoniana
dos anos 1830, com facções que quase rasgaram o país de costa a costa,
com a tentativa de parte do establishment de manter um monopólio de
poder político contra novas realidades demográficas. Os populistas
consideravam os demais incapazes de autogoverno. Em geral, os
jacksonianos venceram.
Três décadas depois, a nação se dividiu
por conta da escravidão, levando à guerra mais sangrenta e letal de sua
história. Estima-se que 600 mil americanos tenham morrido, para uma
população de cerca de 30 milhões. Os confederados do sul foram
derrotados e restaurou-se a União.
A Grande Depressão, assim como as
reações irresponsáveis a ela, deixou um quarto da população sem emprego
por quase uma década. Gente faminta e desesperada disposta a aprovar a
expansão do governo mesmo que à custa da própria liberdade numa forma
jamais prevista pelos “pais fundadores”. O resultado foi uma redefinição
do conceito de liberdade para o “direito” individual de ter suas
necessidades diárias atendidas pelo estado.
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Nos anos 1960, os movimentos hippies,
alimentados pela Guerra do Vietnã, os protestos pelos “direitos civis” e
o ativismo ambientalista, viraram uma febre, um modismo raramente visto
antes. Um quarto da população aderiu de alguma forma ao estilo, na
forma de se vestir ou falar, nas ideias, agindo de modo a refletir seu
desprezo pela maioria silenciosa da “irrelevante” e “careta” América
tradicional. Os hipsters perderam a batalha, eventualmente cortando o
cabelo e entrando na “corrida dos ratos”, mas venceram a guerra. As
universidades, a mídia, Hollywood, as artes, o entretenimento, tudo
passou a ecoar os valores de 1968 em vez daqueles que os precederam.
Agora, diz Hanson, estamos vivendo na
quinta guerra revolucionária, que divide a nação. As consequências da
globalização, o crescimento do “deep state” administrativo, as mudanças
demográficas, as fronteiras abertas, o surgimento de um apartheid
geográfico entre os estados “liberais” e conservadores, e a
institucionalização de uma permanente elite cultural e política – e a
reação a ela – estão destruindo o país. Apesar do verniz de novidade, a
natureza da divisão remete a questões antigas da política e da
sociedade.
Os avanços tecnológicos, a entrada de um
bilhão de chineses na força de trabalho global e o enorme crescimento
do estado dos “direitos” redefiniram a necessidade material. Os pobres
de hoje têm acesso a conveniências que não eram sonhadas há apenas cinco
décadas pelas classes mais altas: um ou dois carros decentes,
televisores de tela grande, tênis e jeans de grife e uma variedade de
aparelhos como ar condicionado e fornos de microondas. A desigualdade
não significa inanição: a obesidade é agora uma epidemia nacional entre
os pobres da nação.
Em termos políticos, o conflito depende
de se os poderes do governo entrincheirado serão usados para garantir
uma igualdade de resultado, à custa da liberdade pessoal e do livre
arbítrio. O velho argumento de que uma classe empreendedora rica, se
deixada livre de restrições fiscais onerosas e desnecessárias para criar
riqueza, enriquecerá todos os americanos, agora está em grande parte
desacreditada. É mais estranho do que isso até. Os ricaços – um Jeff
Bezos, Mark Zuckerberg ou Warren Buffett – por marketing brilhante e
política oportunista estão na sua maioria imunes à auditoria do governo e
à reação popular contra os “barões ladrões”, como no passado. Em vez
disso, a ira redistributiva é voltada contra a classe média alta, que
não tem a influência dos extremamente ricos e está diminuindo devido a
maiores impostos, regulação cada vez maior e comércio globalizado.
Não importa que o modelo social europeu
ossificado não funcione e leve ao declínio coletivo no padrão de vida. O
mundo sabe disso, ao ver a implosão da Venezuela e de Cuba, ou o
declínio gradual da União Europeia e os destroços de seus membros do
Mediterrâneo, ou a situação de estados “liberais” como Illinois e
Califórnia. Em vez disso, é a ideia quase religiosa do igualitarismo que
conta. No cenário global, ela quase ganhou a guerra contra a liberdade.
Nós somos todos criaturas da fazenda da “Revolução dos Bichos” agora.
Na verdade, se o aluno de hoje realmente
lesse o breve romance alegórico de Orwell (talvez improvável porque foi
escrito por um homem heterossexual branco), ele deixaria a mensagem
escapar e, em vez disso, provavelmente aprovaria as várias maquinações
do porco fanático Napoleão para fazer o que julgasse necessário para
acabar com o antigo regime, mesmo que isso significasse recriá-lo sob um
novo verniz “correto”.
O esforço conservador para reverter o
estado de bem-estar social, burocrático e redistribucionista, até agora
falhou. Um déficit anual de US$ 700 bilhões, em cima de uma dívida
nacional de US$ 20 trilhões, passa basicamente ignorado. O governo
necessário para garantir que tais empréstimos e gastos continuem são
agora quase autônomos e transcendem a política – e estão ansiosos para
usar seus formidáveis poderes contra quem o ameaça.
Em uma segunda frente, há uma verdadeira
guerra civil em relação à raça, etnia, gênero e identidade. A imigração
maciça, o surgimento de políticas identitárias oportunistas e um novo
tribalismo substituíram o antigo caldeirão da assimilação, integração e
casamento mestiço. O único obstáculo para o estado tribal é que em breve
haverá muitas vítimas com muitas reivindicações sobre poucos
opressores. São muitos incentivos, da política aos processos de admissão
das universidades, para que a pessoa se identifique com alguma tribo
“vítima” qualquer em vez de simplesmente “americano”.
Quando o tribalismo supera o indivíduo,
então todos os critérios de mérito, caráter e ética desparecem em troca
da identidade: raça, gênero, eis tudo o que importa. Quando uma
sociedade opera na base tribal, como vemos com frequência na África e no
Oriente Médio, tudo passa a se tornar um luxo, até água: a desgraça é
inevitável. Em suma: os Estados Unidos vão continuar sendo uma nação
multirracial, unida por uma cultura comum na qual a aparência
física se torna, em grande parte, irrelevante, ou vão adotar a rota
tribal, como os Balcãs, a Ruanda, o Iraque, ou Ferguson, dentro da
própria América?
Por fim, há uma crescente rejeição dos
princípios fundadores dos Estados Unidos, seus valores tradicionais
baseados no cristianismo e a velha ideia do excepcionalismo americano. O
federalismo e a ideia de uma república, afinal, não conduzem
necessariamente a um igualitarismo radical ou a uma sociedade de iguais
absolutos. No entanto, a mente progressista moderna está vinculada a
dois princípios: que 51% da população em qualquer momento deveria ter a
palavra final em governança somente se refletir os princípios
politicamente corretos; e se a população for “enganada” e votar
incorretamente, uma elite no governo, nos tribunais e na mídia deverá
intervir para fazer avançar adequadamente as agendas “corretas”.
Em termos práticos, as universidades
ainda ensinarão o método indutivo e o conhecimento baseado em fatos, ou o
ativismo social dedutivo? Nosso passado será visto como nobre e às
vezes trágico, ou melodramaticamente como explorador? E os progressistas
respeitarão os contratempos políticos ocasionais nas eleições, os
tribunais e os referendos populares, ou procurarão subverter essas
instituições como impedimentos inaceitáveis para suas agendas
radicalmente igualitárias?
Hanson pergunta, então: quem está vencendo o conflito? O progressismo, responde.
Ele tem um apelo insidioso à natureza
humana, oferecendo contextos e argumentos para a dependência – que é
definida como a consequência de algum tipo de exploração antiética
prévia (em vez de acaso, má sorte ou patologia pessoal, talvez além da
exploração) e, portanto, merecedora de recompensa adequada. O
progressismo promete uma transcendência sobre as limitações da natureza
através de uma educação superior, treinamento adequado e raciocínio
“correto”, como se a pobreza, a doença e a desigualdade não fossem
inatas à natureza humana, mas fossem resultados do egoísmo e da
ignorância e, assim, bem mais facilmente remediados. Isso confunde o
progresso tecnológico com um credo que a própria natureza humana evolui
de formas previsivelmente progressivas, supostamente tornando
instituições e protocolos obsoletos (desde a própria Constituição até
ideias antigas), que antes eram honrados.
Nesta última arena da “guerra” civil,
Donald Trump, o renegado “liberal” e o improvável tradicionalista, ataca
a elite que despreza seu próprio ser, não só por razões de classe e
cultura, mas principalmente por tentar restaurar um regime tradicional
de cidadania, individualismo, assimilação, soberania territorial,
fronteiras reconhecidas, defesa forte, dissuasão no exterior e
capitalismo de livre mercado. Em suma, por trás das histerias diárias
sobre conluios, recusas, obstruções e anulações, há uma guerra em curso,
muitas vezes viciosa, sobre a própria natureza e o futuro da cultura
ocidental em geral e da América em particular.
Será que os igualitários radicais vão realmente derrotar a ideia da liberdade, tão enraizada na criação da América?
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