Rodrigo Constantino
Passei o meu terceiro aniversário nos
Estados Unidos. A data é muito especial por aqui. Afinal, sou nascido em
4 de julho, o dia a Independência Americana. O show de
patriotismo é surpreendente, em especial para quem vem do Brasil. Nosso 7
de setembro é um tanto burocrático, sem muita emoção, com cerimônias
oficiais enaltecendo o Estado. Na América não é nada assim. É a maior
festa do ano, com famílias saindo às ruas com suas bandeiras, celebrando
a grande nação que seus antepassados construíram.
O orgulho do americano médio com sua
pátria é visível. E não é para menos: trata-se de um país próspero e que
vem preservando as liberdades individuais ao longo dos anos, apesar dos
constantes ataques que sofre de dentro e de fora. Se o Iluminismo
francês celebrava a razão, e o britânico a virtude social, então o
americano representava a política da liberdade, como resumiu a
historiadora Gertrude Himmelfarb. Uma mistura interessante, com os pais
fundadores mais racionalistas e libertários lutando por “direitos
naturais” e a prudência e a moderação do lado mais conservador.
A combinação deu certo, aparentemente.
Os próprios fundadores sabiam, porém, que não seria fácil preservar uma
República livre, e temiam que a democracia se transformasse numa
ditadura da maioria, sob a influência de demagogos. Por isso adotaram
instrumentos de proteção, como o federalismo para descentralizar o
poder, os mecanismos de pesos e contrapesos, o voto distrital, uma
população armada, etc. O objetivo sempre foi proteger o cidadão do
Estado, visto com desconfiança. Os pais fundadores sabiam que a
concentração de poder no governo era o caminho mais rápido para a
tirania.
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Foi impossível impedir certo avanço do
governo, e exemplos de abusos não faltam. A era Obama foi marcada por
uma tentativa de mudança de paradigma, e o próprio presidente democrata
dizia abertamente que desejava mudar a América “essencialmente”. Mas não
conseguiu. O estrago não foi pequeno, mas o foco na meritocracia e na
liberdade individual prevaleceu, mesmo que cambaleante. Apesar do
politicamente correto e do coletivismo, o americano médio ainda enxerga o
assistencialismo estatal ou a igualdade de resultados como problemas e
cobra responsabilidade individual de todos por seus atos, reconhecendo
que a desigualdade de resultados será inevitável com pessoas diferentes.
Timothy Snyder, em On Tyranny,
apresenta vinte lições sobre experiências ditatoriais tanto comunistas
como fascistas. Para o autor, a América corre perigo hoje com o governo
Trump. É fato que o atual presidente lançou mão de táticas demagogas
para chegar ao poder, mas Snyder ignora em seu livro que boa parte do
que Trump condena, tanto na imprensa como no governo, é mesmo
condenável. O viés do “jornalismo” é escancarado, e “drenar o pântano”
em Washington é uma necessidade para salvar os Estados Unidos de um
destino latino-americano, onde o “capitalismo de compadres” destruiu o
livre mercado.
Ou seja, Trump pode ter adotado um
estilo um tanto personalista e fanfarrão, semelhante ao de líderes
populistas, mas o que ele veio combater deve ser combatido. O que
evitará caminhos mais perigosos não é tanto a bondade do presidente, mas
as instituições republicanas. É esse o ponto que precisa ser lembrado:
mesmo um líder autoritário e populista como Lula não teria o caminho tão
livre na América como teve no Brasil para avançar sobre as
instituições, aparelhando a máquina estatal com seus subordinados ou
comprando a oposição e a imprensa, sob a negligência passiva da
população. Nos States o buraco é mais embaixo.
O que me traz ao tema central desse
artigo: a baixa receptividade que a democracia liberal encontra em nosso
país. Nossa “república” não só começou com um golpe, como teve vários
outros no caminho. Tivemos poucos espasmos democráticos em meio a vários
governos autoritários ou ditatoriais. E o pior: essas experiências
democráticas foram ruins, via de regra.
A esquerda, como sabemos, nunca teve
mesmo muita simpatia pela democracia. Para ela, ao menos na versão mais
radical, tudo não passa de uma farsa para a tomada do poder. Jacobinos
revolucionários querem criar o “novo mundo”, e não se importam com
“detalhes” como o império das leis ou a alternância de poder, já que a
única coisa que interessa é o radiante fim que nos espera. O que são
algumas cabeças degoladas nesse processo?
À direita há uma turma que rejeita
também a democracia imperfeita, suas necessárias contemporizações, as
negociações com adversários, etc. São saudosistas de um passado
idealizado, onde tudo era muito diferente e melhor e estão dispostos a
passar por cima de quem estiver no caminho para resgatar esse mundo
ilusório. Tais reacionários adotam métodos muito parecidos aos dos
petistas que odeiam. Muitos inclusive vieram da extrema-esquerda,
preservando o estilo e mudando apenas o conteúdo. Escolheram um novo
messias para idolatrar, mas continuam idólatras, praticando culto à
personalidade e desdenhando da própria democracia.
Construir instituições republicanas não é
tarefa fácil, como a experiência global pode atestar. É a exceção, não a
regra. Exige paciência, visão de longo prazo, maturidade, esforço
coletivo e, acima de tudo, espírito cívico, especialmente das elites.
Não combina com a Lei de Gérson, com o jeitinho e a cultura da
malandragem, ou com o hedonismo de quem quer tudo para ontem e dane-se o
amanhã. Os brasileiros estão desiludidos com a democracia e não é para
menos. Se esse é o seu resultado, então não há muito como defendê-la
mesmo.
Mas eis o recado: a desgraça petista foi
um atentado contra a democracia, ainda que tenha feito uso dela. A
solução não é jogar o bebê fora junto com a água suja do banho. Não é
buscar um salvador da Pátria autoritário que fale grosso e queira
desafiar todos, ameaçando até fechar o Congresso se preciso. Já
experimentamos essas rotas de fuga, e nunca acabou bem.
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