A cabeça de Moro, capítulo III: De 2013 até hoje
O
mundo discreto do Juiz Sergio Fernando Moro começou a virar pelo avesso
em 11 de julho de 2013, quando ele, instalado em seu gabinete em
Curitiba, autorizou a polícia federal a fazer “escuta telefônica e
telemática” contra um obscuro doleiro
André Petry - VEJA
Moro
acha que, em geral, os magistrados não gostam de colegas que falam
demais fora dos autos. Mas, nem por isso, ele fala apenas nos autos. Já
se envolveu em movimento contra a corrupção no Paraná e, recentemente,
propôs um projeto de lei prevendo a execução da pena após confirmação
da sentença em segunda instância.(Vanessa Carvalho/Folhapress)
Moro
chegou ao terceiro momento da carreira naquela quinta-feira, 11 de
julho de 2013, em que autorizou a escuta contra o doleiro Alberto
Yousseff. Dali em diante, apesar do desmembramento das denúncias na
Lava-Jato, suas sentenças ficaram bem mais extensas - em média, 31
páginas, contra doze anteriormente - e sua indignação cresceu. As
sentenças viraram como que tribunas. Passaram a distribuir recados e
explicações sobre as controvérsias mais agudas a respeito de sua
atuação: delação premiada, prisão preventiva, artigo publicado em jornal
ou até mesmo um discurso que fez ao receber um prêmio do jornal O
Globo. A defesa de um réu deturpara seu discurso ao afirmar que, ao
falar, havia antecipado seu voto. Na sentença, de agosto passado, Moro
se dá ao trabalho de corrigir: "Explicitamente, afirmei na ocasião que
julgaria segundo a lei e as provas do processo, resguardando o direito
dos acusados".
Além da delação premiada, o aspecto mais controvertido de sua atuação
é, sem dúvida, a decretação de prisões preventivas. Advogados acusam-no
de carcereiro. Até dois ministros do Supremo Tribunal Federal, Celso de
Mello e Marco Aurélio Mello, chegaram a escrever artigos em que
condenam a sucessão de prisões preventivas. Moro se defende, sentença
após sentença, usando o copia e cola de um trecho em que diz o seguinte:
"Se a corrupção é sistêmica e profunda, impõe-se a prisão preventiva
para debelá-la, sob pena de agravamento progressivo do quadro
criminoso". O fato é que o ano termina com o grosso de suas prisões
preventivas ratificado nas instâncias superiores da Justiça.
As mais poderosas bancas de advogados têm lutado com fervor e verve
contra Moro. No país da impunidade, os advogados chegam a falar de
"ciclo de punitivismo". Acusam-no de ser parcial. De fazer "pedaladas
jurídicas". De prender suspeitos para arrancar delações. De odiar os
advogados, ele que é casado com uma advogada. Com ironia, um deles diz
que os julgamentos de Moro têm uma base jurídica toda própria, o "Código
de Processo Penal de Curitiba". Mas, apesar das críticas, de cada 100
recursos impetrados por advogados de acusados na Lava-Jato contra
decisões de Moro, 97 têm sido derrotados. É um placar brutal.
Aos que o acusam de concentrar culpas nos empreiteiros, aliviando a
barra dos agentes públicos, Moro rebate lembrando as preventivas que
decretou contra ex-diretores da Petrobras e ex-deputados. No mesmo
contexto, ao falar do papel do Estado na economia, sustenta: "A
responsabilização de agentes públicos ou privados culpados por corrupção
favorece tanto o Estado como o mercado, sem nenhuma distinção".
A responsabilidade dos empresários, diz Moro, está demonstrada "com
muita singeleza". No caso da Mendes Júnior, por exemplo, a empreiteira
alegou que não corrompeu ninguém e só pagou propina porque foi
extorquida. Moro não deixou passar: "Quem é extorquido procura a
polícia, e não o mundo das sombras". Lembrou que, mesmo depois da saída
da Petrobras do agente público que estaria extorquindo, a empresa
continuou pagando-lhe as parcelas que faltavam da propina. De novo, Moro
cravou: "Quem é vítima de extorsão não honra compromissos de pagamento
com o algoz". Por fim, transcreveu trecho do interrogatório do
empresário Julio Camargo, que fez delação premiada. Indagado por que
nenhum empreiteiro denunciou a extorsão, Camargo respondeu:
- Ah, doutor, porque na verdade o mercado em geral estava contente,
satisfeito com aquilo que estava acontecendo. (...) Então, vai denunciar
para quê?
Foi essa a explicação que Moro considerou ter sido dada "com muita singeleza".
Apesar das frequentes menções de Moro à Operação Mãos Limpas, faxina
anticorrupção da Itália nos anos 90, a fonte mais farta de sua
inspiração jurídica é a Justiça americana. Nela, admira sobretudo a
eficácia: julga, condena e prende. Ou absolve. Sem delongas,
preliminares infindáveis, cascatas de recursos. Nas palestras, Moro
gosta de lembrar que nos EUA de 80% a 90% dos casos penais terminam em
acordo. O acusado, ciente de que há prova pujante contra si, assume que é
culpado em troca de pena menor. Isso evita o custo do processo e dá
agilidade à Justiça.
Foi na Justiça americana que Moro buscou um instituto que, na
Lava-Jato, pode acabar colocando gente graúda na cadeia: a "cegueira
deliberada". No direito americano, a doutrina, conhecida por willful
blindness, foi criada pela Suprema Corte. Refere-se a quem se comporta
como um avestruz, enterrando a cabeça para, propositadamente, não
enxergar um crime - e dele tirar algum proveito. Em setembro passado,
Moro condenou réus da Lava-Jato que concordaram em fazer transações
financeiras em nome de empreiteiras da Petrobras, tendo preferido não
conhecer a origem do dinheiro. Como a doutrina da "cegueira deliberada" é
uma inovação no direito brasileiro, advogados de defesa protestaram
ruidosamente. Em outubro, Moro condenou o assessor de um deputado que
emprestou sua conta bancária ao parlamentar. Entendeu que o funcionário
escolhera fechar os olhos à evidência de que o deputado estava metido em
roubalheiras, dado que ninguém pede a conta bancária de outros apenas
para mudar de rotina.
Nos casos de lavagem de dinheiro, Moro já calçou várias condenações
numa decisão tomada em 2001 pela corte de apelações dos estados da
Geórgia, Flórida e Alabama. Nela, os juízes americanos condenaram o réu
por lavagem de dinheiro diante da prova de que seu cliente era um
narcotraficante. Entenderam que essa prova era suficiente para concluir
que as transações do réu com seu cliente envolviam bens contaminados
pelo crime. A Justiça espanhola também tomou decisões semelhantes. Moro
bebeu na fonte americana e na espanhola. Fica claro que ele se empenha
na condenação do réu quando está convencido da culpa. Nem sempre
consegue, como admitiu recentemente: "Já absolvi pessoas que no meu
íntimo considerava culpadas".
Moro acha que, em geral, os magistrados não gostam de colegas que
falam demais fora dos autos. Chamam esse desvio de comportamento de
"gilmarismo", numa referência ao falante ministro Gilmar Mendes, do
Supremo Tribunal Federal. Mas, nem por isso, Moro fala apenas nos autos.
Já se envolveu em movimento contra a corrupção no Paraná e,
recentemente, propôs um projeto de lei, em tramitação no Senado,
prevendo a execução da pena após confirmação da sentença em segunda
instância. Hoje, o condenado só começa a cumprir pena depois que a
sentença percorreu todas as instâncias possíveis, o que quase sempre
leva anos. Com isso, Moro acha que o Brasil poderá evitar que a
Lava-Jato resulte na frustração da Operação Mãos Limpas na Itália, que
derrubou as duas principais legendas, a Democracia Cristã e o Partido
Socialista, mas acabou abrindo lugar à ascensão de um fanfarrão como
Silvio Berlusconi, graduado nas mesmas negociatas que a faxina pretendeu
varrer. Isso aconteceu, na opinião de Moro, porque a Itália, entre
outras coisas, não reformou seu sistema processual, que, como o
brasileiro, admite recursos a perder de vista.
Outra modalidade do ativismo de Moro é pregar para não convertidos.
Em agosto, ele fez palestra no Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais, o IBCCrim, entidade que condena fortemente os métodos de
Moro. O juiz falou, colheu uns bons aplausos e ainda rendeu uma piada de
aliados: "Eles são do IBCCrim, o Moro é do IBCCrau". Mas, mesmo nos
autos, Moro não deixa de promover aquilo em que acredita. Em agosto de
2008, até despachou cópia de sua sentença para uma CPI que, em Brasília,
discutia interceptações telefônicas. Como a sentença tratava do mesmo
assunto, Moro queria fazer sua visão chegar aos parlamentares, como,
aliás, deveria ser prática de todos os juízes. Moro defende a ideia de
que a duração de um grampo telefônico não deve ser previamente
delimitada por lei. Na sentença que enviou para Brasília, dizia que
autorizara a interceptação telefônica de criminosos durante um ano
inteiro e o trabalho rendera ótimos frutos: doze apreensões de drogas e
armas, além de provas do crime.
Em sua tese de pós-graduação, convertida em livro em 2004, Moro não
esconde que é mais favorável ao ativismo judicial do que à
autocontenção. Tem predileção pelos juízes que usam sua interpretação da
Constituição para "exercer relevante papel no rompimento de inércias
incompatíveis com o ideal democrático". Por isso, é um admirador do juiz
Earl Warren, que considera "o maior presidente da Suprema Corte
americana do século XX". Ou seja: Moro prefere os juízes que se
comportam como defensores ativos dos princípios da democracia. Que agem
imbuídos de uma missão. Já escreveu, para espanto de juristas mais
conservadores, que faltam à magistratura brasileira "interpretações
judiciais criativas". Nos EUA, sua visão do papel do juiz o colocaria ao
lado dos magistrados democratas, em franca oposição aos republicanos,
que são visceralmente contrários ao ativismo jurídico.
O zelo de Moro pela democracia parece ter sido reforçado na
Lava-Jato, mas não surgiu aí. Vem de antes. Em três de seus livros, o
juiz mostra-se preocupado com a construção do regime democrático e com o
combate ao crime, sobretudo o do colarinho-branco, que interfere no
processo eleitoral. Em sentença ainda sobre o caso Banestado, censurou
severamente um grupo de empresários que fraudara empréstimos de 7,3
milhões de reais junto ao banco para jogar a dinheirama na campanha
eleitoral de 1998. A certa altura, Moro escreveu: "Tal fato é
extremamente reprovável, considerando os males causados pela criação e
manutenção de esquemas paralelos de doações eleitorais em um regime
democrático e que levam à distorção do sistema de eleições livres".
Moro é um juiz atento à corrupção, à ética na vida pública, à
qualidade dos homens públicos brasileiros. Impressiona-se, sobretudo,
com a incrível resistência dos políticos que enfrentam marés de lama sem
abandonar a carreira nem perder o mandato. Em uma de suas sentenças
mais longas, de 245 páginas, na qual condenou o ex-tesoureiro do PT João
Vaccari, Moro escreveu que considera o enriquecimento ilícito dos
agentes públicos um crime menos grave do que a contaminação da política
pelo crime. Na decisão em que pediu a prisão preventiva de José Carlos
Bumlai, o empresário amigo do ex-presidente Lula, Moro reforçou essa
visão: "O mundo da política e o do crime não deveriam jamais se
misturar". Nessa sentença, num sinal de que está cada vez mais à vontade
em seu ofício e com clareza de objetivos, Moro ainda se permitiu uma
ironia. Como Bumlai anda por aí dizendo que fala em nome de Lula, Moro
escreveu que a prisão preventiva do empresário pretendia, entre outros
motivos, "estancar o potencial de danos à reputação do ex-presidente". É
impossível, já diz o ditado popular, decifrar a cabeça de um juiz. Mas,
no caso de Moro, quem esperar moleza certamente vai quebrar a cara.