A fantasia do doutor Sérgio Côrtes
O esquema de corrupção na Saúde da quadrilha Cabral é mais vil, porque rouba de quem padece em fila ou no chão de hospital
Dorrit Harazim - O Globo
À primeira
vista, mocinho e bandido se confundem. Não fosse a legenda nas fotos da
prisão do ex-secretário de Saúde do Rio de Janeiro, seria difícil
distingui-lo dos agentes que o escoltavam. Isso porque Sérgio Côrtes
apostou em um visual “neutro” para o momento da detenção. Fantasiou-se
de Federal.
De físico enxuto, vestia um par de jeans desbotado
semelhante ao dos agentes, e uma camiseta lisa preta com logomarca
fazendo às vezes do emblema da PF. Trazia um boné liso enterrado na
cabeça e ostentava uma barba e bigode seriíssimos que coincidiam com os
do agente a seu lado, favorecendo a confusão. Também cuidou de carregar a
sacola que separara para a prisão com a desenvoltura de agentes que
levam aquelas maletas pretas repletas de material apreendido.
Nestes
tempos de celular, o dr. Côrtes deve ter calculado que um descuido de
imagem pode sair tão caro quanto um crime — afinal, ele é um dos
fotografados de guardanapo amarrado na cabeça num restaurante
parisiense, em gáudio com outros acusados de corrupção da quadrilha do
ex-governador Sérgio Cabral.
A foto que ornamenta o seu perfil
profissional na rede de negócios Linkedin permanece a mesma: mostra-o
bastante imponente, focado de baixo para cima. Ao fundo, neve e um dos
prédios da Harvard Business School, onde consta ter feito cursos de
Administração e Finanças em 2014.
Mais cedo do que tarde,
contudo, ele terá de atualizar a relação de seus vínculos empregatícios.
Até a noite de quinta feira, quando esta coluna foi concluída, o
cirurgião ortopedista continuava listado como vice-presidente médico da
Rede D’Or, uma das maiores do país, apesar de a empresa hospitalar tê-lo
desligado de seus quadros no mesmo dia em que foi preso.
É cedo
para dizer onde mais o vasto esquema de corrupção na Saúde vai
respingar, mas a transferência de logradouro do ortopedista está
preventivamente consumada: de uma cobertura na Lagoa, Zona Sul do Rio,
para uma cela em Bangu 8, no mesmo presídio da Zona Oeste onde Sérgio
Cabral está preso desde novembro.
A Operação Fatura Exposta que
resultou na prisão de Côrtes e dois grandes empresários do setor com
quem teria atuado — Miguel Skin e Gustavo Estellita — tem componentes
tão doentios que em qualquer país remotamente civilizado sua dimensão,
causa e desdobramentos seriam o maior escândalo em pauta. Mas num Brasil
com 8 ministros, 12 governadores, 24 senadores, 39 deputados, 5
ex-presidentes, governadores, cúpula partidária e centenas de atores
menores sob suspeição — a maioria por corrupção, lavagem de dinheiro ou
caixa 2 — nada é normal. Apenas os depoimentos gravados dos delatores —
ora detalhistas, jocosos ou corriqueiros, mas sempre serenos — mantêm um
tom de absoluta calmaria. Uma calmaria assustadora, diga-se.
O
apocalipse em Brasília que desviou o foco da Operação Fatura Exposta no
Rio com certeza é mais tentacular, causa incerteza nos três poderes da
República e compromete toda uma visão de futuro do país. Mas se houvesse
uma gradação moral de baixezas, o esquema de corrupção na Saúde da
quadrilha Cabral, esmiuçado em reportagem de Chico Otávio e Daniel
Biasetto, é mais vil. Não em volume de dinheiro desviado (R$ 300
milhões, segundo as primeiras apurações), mas por roubar de quem padece
em fila ou no chão de hospital público.
O titular da Saúde fora
anunciado como grande promessa de higienização e moralidade em 2006:
“Fico muito tranquilo em deixar a pasta nas mãos desse médico
intolerante com a incompetência, inimigo da corrupção”, garantira Cabral
após sua primeira eleição por 68% dos votos. Côrtes fabricara perfil de
bom gestor no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into),
que dirigiu por quatro anos e notabilizou-se por frases como “O meu
sonho é que R$ 1 da Saúde valha realmente R$1".
Na manhã de 4 de
janeiro de 2007, com menos de três dias no cargo de novo governador,
Cabral levou Côrtes para uma visita de inspeção ao Hospital estadual
Albert Schweitzer, em Realengo. À época, indignara-se com as humilhações
sofridas pela população que precisava de melhorias na saúde:
“É
uma calamidade pública... Uma coisa é criminoso matando inocentes. Outra
é o estado cometer genocídio.... Com certeza o Ministério Público vai
verificar as causas e tomar providências... É um verdadeiro caso de
polícia... Aqui não tem governo. O problema não é dinheiro, é gestão... O
que o estado faz aqui é cometer assassinatos...”
Hoje, as mesmas
exigências de seu discurso de dez anos atrás estão sendo ouvidas. Mas
pela Operação Fatura Exposta. Segundo as denúncias sob investigação,
todos os contratos da secretaria da era Cabral desviavam 5% para o
governador, 2% para o titular da pasta, 1% para os conselheiros do
Tribunal de Contas do Estado, 1% para o esquema de corrupção e 1% para o
autor da delação, Cesar Romero Vianna.
Em tempo: o Hospital
Universitário Pedro Ernesto, vinculado à Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, tem capacidade para 512 leitos. Ele opera há 10 anos com no
máximo 370 e no momento são apenas 200. Está em estudo um plano de
contingência para o funcionamento da unidade.
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