domingo, 16 de abril de 2017

A fantasia do doutor Sérgio Côrtes
O esquema de corrupção na Saúde da quadrilha Cabral é mais vil, porque rouba de quem padece em fila ou no chão de hospital
Dorrit Harazim - O Globo 
À primeira vista, mocinho e bandido se confundem. Não fosse a legenda nas fotos da prisão do ex-secretário de Saúde do Rio de Janeiro, seria difícil distingui-lo dos agentes que o escoltavam. Isso porque Sérgio Côrtes apostou em um visual “neutro” para o momento da detenção. Fantasiou-se de Federal.
De físico enxuto, vestia um par de jeans desbotado semelhante ao dos agentes, e uma camiseta lisa preta com logomarca fazendo às vezes do emblema da PF. Trazia um boné liso enterrado na cabeça e ostentava uma barba e bigode seriíssimos que coincidiam com os do agente a seu lado, favorecendo a confusão. Também cuidou de carregar a sacola que separara para a prisão com a desenvoltura de agentes que levam aquelas maletas pretas repletas de material apreendido.
Nestes tempos de celular, o dr. Côrtes deve ter calculado que um descuido de imagem pode sair tão caro quanto um crime — afinal, ele é um dos fotografados de guardanapo amarrado na cabeça num restaurante parisiense, em gáudio com outros acusados de corrupção da quadrilha do ex-governador Sérgio Cabral.
A foto que ornamenta o seu perfil profissional na rede de negócios Linkedin permanece a mesma: mostra-o bastante imponente, focado de baixo para cima. Ao fundo, neve e um dos prédios da Harvard Business School, onde consta ter feito cursos de Administração e Finanças em 2014.
Mais cedo do que tarde, contudo, ele terá de atualizar a relação de seus vínculos empregatícios. Até a noite de quinta feira, quando esta coluna foi concluída, o cirurgião ortopedista continuava listado como vice-presidente médico da Rede D’Or, uma das maiores do país, apesar de a empresa hospitalar tê-lo desligado de seus quadros no mesmo dia em que foi preso.
É cedo para dizer onde mais o vasto esquema de corrupção na Saúde vai respingar, mas a transferência de logradouro do ortopedista está preventivamente consumada: de uma cobertura na Lagoa, Zona Sul do Rio, para uma cela em Bangu 8, no mesmo presídio da Zona Oeste onde Sérgio Cabral está preso desde novembro.
A Operação Fatura Exposta que resultou na prisão de Côrtes e dois grandes empresários do setor com quem teria atuado — Miguel Skin e Gustavo Estellita — tem componentes tão doentios que em qualquer país remotamente civilizado sua dimensão, causa e desdobramentos seriam o maior escândalo em pauta. Mas num Brasil com 8 ministros, 12 governadores, 24 senadores, 39 deputados, 5 ex-presidentes, governadores, cúpula partidária e centenas de atores menores sob suspeição — a maioria por corrupção, lavagem de dinheiro ou caixa 2 — nada é normal. Apenas os depoimentos gravados dos delatores — ora detalhistas, jocosos ou corriqueiros, mas sempre serenos — mantêm um tom de absoluta calmaria. Uma calmaria assustadora, diga-se.
O apocalipse em Brasília que desviou o foco da Operação Fatura Exposta no Rio com certeza é mais tentacular, causa incerteza nos três poderes da República e compromete toda uma visão de futuro do país. Mas se houvesse uma gradação moral de baixezas, o esquema de corrupção na Saúde da quadrilha Cabral, esmiuçado em reportagem de Chico Otávio e Daniel Biasetto, é mais vil. Não em volume de dinheiro desviado (R$ 300 milhões, segundo as primeiras apurações), mas por roubar de quem padece em fila ou no chão de hospital público.
O titular da Saúde fora anunciado como grande promessa de higienização e moralidade em 2006: “Fico muito tranquilo em deixar a pasta nas mãos desse médico intolerante com a incompetência, inimigo da corrupção”, garantira Cabral após sua primeira eleição por 68% dos votos. Côrtes fabricara perfil de bom gestor no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), que dirigiu por quatro anos e notabilizou-se por frases como “O meu sonho é que R$ 1 da Saúde valha realmente R$1".
Na manhã de 4 de janeiro de 2007, com menos de três dias no cargo de novo governador, Cabral levou Côrtes para uma visita de inspeção ao Hospital estadual Albert Schweitzer, em Realengo. À época, indignara-se com as humilhações sofridas pela população que precisava de melhorias na saúde:
“É uma calamidade pública... Uma coisa é criminoso matando inocentes. Outra é o estado cometer genocídio.... Com certeza o Ministério Público vai verificar as causas e tomar providências... É um verdadeiro caso de polícia... Aqui não tem governo. O problema não é dinheiro, é gestão... O que o estado faz aqui é cometer assassinatos...”
Hoje, as mesmas exigências de seu discurso de dez anos atrás estão sendo ouvidas. Mas pela Operação Fatura Exposta. Segundo as denúncias sob investigação, todos os contratos da secretaria da era Cabral desviavam 5% para o governador, 2% para o titular da pasta, 1% para os conselheiros do Tribunal de Contas do Estado, 1% para o esquema de corrupção e 1% para o autor da delação, Cesar Romero Vianna.
Em tempo: o Hospital Universitário Pedro Ernesto, vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tem capacidade para 512 leitos. Ele opera há 10 anos com no máximo 370 e no momento são apenas 200. Está em estudo um plano de contingência para o funcionamento da unidade.

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