Chegou a hora
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO - O Estado de S.Paulo
Quando eventualmente este artigo vier a ser lido, a Câmara dos
Deputados estará escolhendo seu novo presidente. Ganhe ou perca o
governo, as fraturas na base aliada estarão expostas. Da mesma maneira, o
esguicho da Operação Lava Jato respingará não só nos empresários e
ex-dirigentes da Petrobrás nomeados pelos governos do PT, mas nos
eventuais beneficiários da corrupção que controlam o poder. A falta de
água e seus desdobramentos energéticos continuarão a ocupar as
manchetes. Não se precisa saber muito de economia para entender que a
dívida interna (R$ 3 trilhões!), os desequilíbrios dos balanços da
Petrobrás e das empresas elétricas, a diminuição da arrecadação federal,
o início de desemprego, especialmente nas manufaturas, o aumento das
taxas de juros, as tarifas subindo, as metas de inflação sendo
ultrapassadas dão base para prognósticos negativos do crescimento da
economia.
Tudo isso é preocupante, mas não é o que mais me preocupa. Temo,
especialmente, duas coisas: o havermos perdido o rumo da História e o
fato de a liderança nacional não perceber que a crise que se avizinha
não é corriqueira - a desconfiança não é só da economia, é do sistema
político como um todo. Quando esses processos ocorrem, não vão para as
manchetes de jornal. Ao entrar na madeira, o cupim é invisível; quando
percebido, a madeira já apodreceu.
Por que temo havermos perdido o rumo? Porque a elite governante não se
apercebeu das consequências das mudanças na ordem global. Continua a
viver no período anterior, no qual a política de substituição das
importações era vital para a industrialização. Exageraram, por exemplo,
ao forçar o "conteúdo nacional" na indústria petrolífera, excederam-se
na fabricação de "campeões nacionais" à custa do Tesouro. Os resultados
estão à vista: quebram-se empresas beneficiárias do BNDES, planejam-se
em locais inadequados refinarias "premium" que acabam jogadas na vala
dos projetos inconclusos. Pior, quando executados, têm o custo e a
corrupção multiplicados. Projetos decididos graças à "vontade política"
do mandão no passado recente.
Pela mesma cegueira, para forçar a Petrobrás a se apropriar do pré-sal,
mudaram a Lei do Petróleo, que dava condições à estatal de concorrer no
mercado, endividaram-na e a distanciaram da competição. Medida que
isentava a empresa da concorrência nas compras se transformou em mera
proteção para decisões arbitrárias que facilitaram desvios de dinheiro
público.
Mais sério ainda no longo prazo: o governo não se deu conta de que os
Estados Unidos estavam mudando sua política energética, apostando no gás
de xisto com novas tecnologias, buscando autonomia e barateando o custo
do petróleo. O governo petista apostou no petróleo de alta
profundidade, que é caro, descontinuou o etanol pela política suicida de
controle dos preços da gasolina, que o tornou pouco competitivo, e,
ainda por cima (desta vez graças à ação direta de outra mandona),
reduziu a tarifa de energia elétrica em momento de expansão do consumo,
além de ter tomado medidas fiscais que jogaram no vermelho as
hidrelétricas.
Agora todos lamentam a crise energética, a falta de competitividade da
indústria manufatureira e a alta dos juros, consequência inevitável do
desmando das contas públicas e do descaso com as metas de inflação. Os
donos do poder esqueceram-se de que havia alternativas, que sem
renovação tecnológica os setores produtivos, isolados, não sobrevivem na
globalização e que, se há desmandos e corrupção praticados por
empresas, eles não decorrem de erros do funcionalismo da Petrobrás, nem
exclusivamente da ganância de empresários, mas de políticas que são de
sua responsabilidade, até porque foi o governo que nomeou os diretores
ora acusados de corrupção, assim como foram os partidos ligados a ele os
beneficiados.
Preocupo-me com as dificuldades que o povo enfrentará e com a perda de
oportunidades históricas. Se mantido o rumo atual, o Brasil perderá um
momento histórico e as gerações futuras pagarão o preço dos erros dos
que hoje comandam o País. Depois de 12 anos de contínua tentativa de
desmoralização de quase tudo o que meu governo fez, bem que eu poderia
dizer: estão vendo, o PT beijou a cruz, tenta praticar tudo o que negou
no passado - ajuste fiscal, metas de inflação, abertura de setores
públicos aos privados e até ao "capital estrangeiro", como no caso dos
planos de saúde. Quanto ao "apagão" que nos ronda, dirão que faltou
planejamento e investimento, como disseram em meu tempo? Em vez disso,
procuro soluções.
Nada se consertará sem uma profunda revisão do sistema político e mais
especificamente do sistema partidário e eleitoral. Com uma base
fragmentada e alimentando os que o sustentam com partes do Orçamento, o
governo atual não tem condições para liderar tal mudança. E ninguém em
sã consciência acredita no sistema prevalecente. Daí minha insistência:
ou há uma regeneração "por dentro", governo e partidos reagem e alteram o
que se sabe que deve ser alterado nas leis eleitorais e partidárias, ou
a mudança virá "de fora". No passado, seriam golpes militares. Não é o
caso, não é desejável nem se veem sinais.
Resta, portanto, a Justiça. Que ela leve adiante a purga; que não se
ponham obstáculos insuperáveis ao juiz, aos procuradores, aos delegados
ou à mídia. Que tenham a ousadia de chegar até aos mais altos hierarcas,
desde que efetivamente culpados. Que o STF não deslustre sua tradição
recente. E, principalmente, que os políticos, dos governistas aos
oposicionistas, não lavem as mãos. Não deixemos a Justiça só. Somos
todos responsáveis perante o Brasil, ainda que desigualmente. Que cada
setor político cumpra a sua parte e, em conjunto, mudemos as regras do
jogo partidário eleitoral. Sob pena de sermos engolfados por uma crise
que se mostrará maior do que nós.
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